sábado, 30 de novembro de 2013

A PORTA DA PARTILHA

.
Margarida Cepêda, A 1.ª porta
.
.
.
O barco navega nas aparências, transpondo a fronteira do tempo em que a função das várias variáveis é manipulada no filtro duma só variável. Para trás ficou o tempo dos cantos ao amanhã, como se tudo estivesse logo ali. Não estava, não está.
Tentamos determinar a origem dos ventos, o que os faz mover, mas há sempre algo que não acompanha a sua sagacidade: umas vezes ilude-nos o canto da sereia, que nos acomoda, noutras deparamos com a nossa infimidade, que nos reformula. Do que permitimos parece haver solução, baseada em equilíbrio de forças, do que não sabemos apenas nos resta ousar. Se a primeira é mundana, à tona d'água, a segunda mexe com a nossa caixa negra. E isso assusta. Ousar, no mínimo, implica ficar com a criança nos braços, o que, assente a poeira, é sempre o início de algo: de nos descobrirmos, de nos desafiarmos. Contudo, e apesar das evidências, teimamos em acomodar o medo, em negar canteiros às flores.
Aqui e ali, apesar do uivo dos lobos, ainda há um recanto na lareira para quem chega. A horta, enquanto sustentável, é convicta fonte de partilha. Não para ficar, que a cumplicidade quer-se revigorante ponto de partida. Seja lá o que isso for.
.
.

sábado, 23 de novembro de 2013

APOLOGIA DAS LOAS ÀS MANHÃS DE SÁBADO

.
Hélio Cunha, A Fonte da Juventude
.
.
.
Um levantar tranquilo, em lentos passos, o relógio no mais fundo do baú.
O café bem quente, o olhar nas tonalidades da serra, através da vidraça, mescla de verdes, dourados e castanhos de pinheiros, carvalhos, cerejeiras e castanheiros. A alma começa a encher.
A horta recebe a primeira visita. Não há lagartas à vista, couves e repolhos prosseguem o seu lento crescimento, lado a lado com alfaces e morangueiros.
Mais além, em zona não cultivada, a lenha, cortada no início do Verão e espalhada pelo chão, espera por cuidados. Apela-se à vontade, às luvas e ao carrinho de mão. A pilha de lenha, no abrigo, vai crescendo. Nada mais conta, apenas a satisfação de fazer o que deve ser feito.
No final da manhã, vestidas por completo as vestes da harmonia, escolhe-se a música certa, chave mestra dos mais íntimos recantos, acende-se a lareira e arquitecta-se o almoço.
O eco da diatribe dos homens, hoje, fica à entrada do portão. Num mundo em constante mudança, as manhãs de sábado, em contacto com a natureza, continuam a entoar loas à vida.
.
.

sábado, 16 de novembro de 2013

INFINITOS VOOS, ETERNA SOLIDÃO

.
Pintura de Margarida Cepêda
.
.
.
Sinto a tua inquietação, a ânsia de domares as sombras que te perturbam os dias.
Mal desponta a aurora, pegas no melhor de ti e vais ao encontro do marulhar das ondas, ritual primevo na convocação da essência apaziguadora. É a hora de te despires, de enfrentares a tua efemeridade. Quando, por fim, começas a entender o ritual das gaivotas, há sempre algo que te transcende, que as impele para longe. 
É grande a sede de infinito, perpetuação da tua inquietação, mas não te basta entender, tu queres o poder do voo. E, sem te dares conta, ficas cada vez mais só.
.
.

sábado, 9 de novembro de 2013

OS NOVOS DEUSES DA LUA

.
Hélio Cunha, A lua do caçador
.
.
.
Queima-se a dignidade, semeia-se o infortúnio. Da colheita augura-se a fúria, o desespero, correrias de vai e vem entre pés descalços e botas cardadas.
No final, purga feita, apenas se cultivam marionetas. Os novos deuses não carecem de mais. 
.
.

sábado, 2 de novembro de 2013

A ETERNA QUESTÃO DE OUSAR

.
Hélio Cunha, Pescadores de pérolas
.
.
.
Há homens que trazem o mundo nos olhos. Ouvem-se, ouvem o vizinho, ouvem as árvores, conjugando tudo no mesmo respirar.
Há homens que, sendo o que são, se ultrapassam. São seres que acreditam, que lutam, que tudo abarcam no infinito.
Há homens, por aí, que ousam ser o que são, forjam o seu destino na imensidão da sua alma. Só nós, eternos temerosos, permanecemos em contínua sonolência.
.
.