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Levantou-se cedo, como era habitual. Após o pequeno almoço, com um livro ao alcance do olho, deixou que a manhã se arrastasse, numa modorra aprazível, espreitando a passarada, de quando em vez, através da vidraça. Tudo estava tranquilo, o mundo parecia no seu lugar. Havia tempo para preparar o almoço.
De repente, qual trombeta de alarme, o telefone entoa a sua cantilena. Quem seria?
Não eram desgraças nem promessas do paraíso, que isto de vender uma ideia tem muito que se lhe diga. Era, muito simplesmente, o filho, a anunciar que chegariam mais cedo para o almoço, pois o Miguel, o seu neto, tinha trocado as voltas ao sono. Olhou para o relógio. Não se podia descuidar, pois o que antes lhe parecia muito passou a ser resvés Campo de Ourique.
Picou a cebola e os alhos e reservou num prato. Depois, sem mais delongas, pegou em dois tomates maduros, vindos directamente da horta, tirou-lhes a pele e passou-os pela trituradora. Voltou a reservar. A seguir, tentando manter-se organizado, pegou no tacho das grandes ocasiões e preencheu-lhe o fundo com azeite da região, acrescentando-lhe uma folha de louro. Parou um pouco para pensar. Sim, parecia que tudo estava segundo os conformes. E retomou a azáfama. Tirou os camarões do frigorífico, acenou-lhes com o olhar e, após deixar a cebola e o alho a refogar - e recordou-se que no norte se diz esturgir - começou-os a descascar, reservando as cabeças num prato. Pelo meio, e quando se certificou que o refogado estava no ponto, acrescentou-lhe o tomate triturado, em lume brando, a fim de apurar da melhor forma. Depois, concluído o descasque, deixou os moçoilos camarões a exibir a sua nudez, muniu-se duma varinha mágica, meteu as cabeças num copo e triturou-as comme il fault. Era este o verdadeiro segredo da receita.
Voltou a fazer um compasso de espera, contrariando o tempo, enquanto apelava à memória que lhe indicasse o que faltava. Não era muito.
O tomate parecia já ter apurado. Depois de colocar os moçoilos camarões no tacho, aconchegados com o caldo das deliciosas cabecinhas, devidamente coado, mediu a quantidade de arroz - vaporizado, no caso, pois previne qualquer excesso de tempo na cozedura - e acrescentou a água devida, na proporção de 1 por 3, mas já descontando a quantidade de caldo, que quem é habitué na cozinha sabe do que estou a falar.
Entretanto, e depois de colocada uma pitada de sal e dum pouco de jindungo, deu um saltinho à horta e colheu a salsa suficiente para um agradável raminho de cheiros.
Chegaram à hora, os pais puseram a mesa e ele, qual recompensa abençoada, deixou-se envolver pelos braços do Miguel. O arroz de camarão, regado com um verde Deuladeu, da casta Alvarinho, era para ser fruído como deve ser, em aprazível convívio. Mas antes, e mais que tudo, o calor daquele abraço era para ser sentido, fruído, pois não tinha correspondência em qualquer dicionário, a não ser o da alma.
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