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AC, Início do recolhimento
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O sol vai-se inclinando, convidando ao recolhimento. As borboletas, contudo, continuam a pousar nas couves, depositando ovos e mais ovos, dos quais eclodem lagartas que, aproveitando o facto de eu não utilizar produtos químicos na horta, vão deglutindo folha após folha, conferindo ao conjunto um rendilhado a que, confesso, não acho muita piada. Se elas as comem, não as como eu nem os meus. Rendo-me à evidência.
As folhas das árvores, entretanto, vão caindo, começando a estrumar o solo para a ressurreição do próximo ciclo. Enquanto passeio, olhando para a configuração do mosaico cromático, o pensamento, com toda a naturalidade, começa a soltar-se. E, a propósito sabe-se lá do quê, evoco as palavras adolescentes dum papel amarelado descoberto uns dias antes, aquando dumas arrumações: "Não sei quem tu és, mas imagino-te. És alguém para quem eu esteja, sempre, disposto a dar e receber tudo, TUDO!" Assim mesmo, com ponto de exclamação, e a última palavra reforçada com maiúsculas.
Não posso deixar de sorrir, pensando na veemência do "tudo" na convicção dum adolescente. E, quase em modo automático, relembro a quebra da espontaneidade nas crianças à medida que vão crescendo, para a associar ao soçobrar das convicções juvenis aquando do embate com a realidade.
Crescer é mesmo assim, dir-me-ão alguns. Certo, mas é também aí, para os menos acautelados, que começa o declinar dos sonhos. E, não tendo estrutura para aguentar o embate, a pessoa definha, como uma planta com pouca água, limitando-se a tentar sobreviver.
Um sonho tem que ser coisa viva, associada à lucidez, e defendido como coisa preciosa, roupa imaginária da qual nunca nos poderemos libertar. Para isso há que desafiar os medos, os tais que, na sombra, caminham sempre connosco, definindo muito do caminho a trilhar: ou cedemos, prescindindo daquilo que poderá estar para lá da próxima curva, ou seguimos em frente, ousando enfrentar o labirinto de sombras que nos tenta cercear os passos, acenando com artificiais zonas de conforto. São uma luta constante, os medos, e deles não há memória dum confronto leal. São insidiosos, traiçoeiros, sempre prontos a explorar as fraquezas do caminhante, semeando tentações sem fim. É por isso que, à chegada, embora de bem com o universo, o vencedor da caminhada é um solitário. Porque poucos o conseguem.
Na horta, indiferentes a considerações humanas, as lagartas continuam, num manjar silencioso, a rendilhar as couves.
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