sábado, 27 de janeiro de 2018

A POUPA

.
AC, Poupa: focada no alimento, desfocada na imagem
.
.
É laboriosa, quase pontual, isto na perspectiva de quem observa. Depois de se instalar debica constantemente, em movimentos sincopados, conseguindo encontrar alimento onde mais ninguém o vê. Mas, para lá de tudo o mais, é esquiva, como que sentindo que a proximidade dos humanos não augura nada de bom. 
Resisto à tentação de lhe pôr um nome, isso seria sinónimo de propriedade. Que não é o caso. A poupa que frequenta o território, supostamente meu, não é de ninguém, ela tece o seu próprio destino. Quanto muito partilha o mesmo espaço, supremo privilégio, deixando dádivas que eu agradeço profundamente. É que a partilha tem a duração dum pequeno-almoço, tão só, daí esta refeição ter tendência a ser saboreada sem qualquer pressa, como se de um sagrado ritual se tratasse.
Nada sei da azáfama da poupa enquanto estou ausente, mas às vezes, quando regresso, ela ainda anda por aqui. Com o tempo, após várias tentativas, ela deixa-me aproximar, mas pouco. O voo, para longe, é o resultado mais provável. E então resguardo-me, na esperança de que a poupa regresse, mas não. Só no dia seguinte, bem cedo, ela retoma a sua azáfama de debicar, debicar constantemente, albergando alimento como se tivesse um rancho de filhotes à sua espera.
A poupinha, como aqui é tratada, à distância, tem o condão de dar vida às primeiras cores da manhã. Embora esquiva, como convém, ela já faz parte da saudável rotina familiar.
.
.

domingo, 21 de janeiro de 2018

O LEVE DESPERTAR DO DRAGÃO

.
Fotografia de AC
.
.
Há um dragão que desperta, lentamente, tecendo hologramas de labaredas, como se quisesse avivar sinais de transcendência, que povoam, em leve torpor, a caixa negra de cada um. Mas é apenas por um momento, não mais, qual mensagem reservada aos mais atentos.
Ontem, quando passei por ti, caminhavas, convicta, de fato de treino e garrafa de água na mão, com os passos embalados na promessa de eternos dias. Não reparavas, contudo, no despertar do dragão. Estavas demasiado certa dos teus passos, traçados a régua e esquadro. No teu mundo não há lugar para dragões.
.
.

domingo, 14 de janeiro de 2018

MADRUGADA

.
Margarida Cepeda, Leves são os pássaros
.
.
Sinto-te à distância, mas perto de mim.
O teu respirar é fonte abundante, ainda desconhecedor do manancial da nascente, mas que, enquanto trauteia, imitando os pássaros, cultiva a secreta ambição do conhecimento dos segredos.
Sinto-te o nascer da inquietação, tecida no mais fundo de ti. E isso perturba-me. Talvez porque deseje descobrir as aflições e as tempestades que se escondem sob o teu manto, ainda sem os suaves contornos do leito.
Mas a água jorra, fecunda. E, por ora, é quanto basta para dar cor ao anseio.
.
.
Outubro de 2010
.
.

sábado, 6 de janeiro de 2018

LEVES ROTINAS, PROFUNDOS SENTIRES

.
Luís Portugal, Uma semente
(A gravação não é das melhores, mas o timbre de quem sente o que canta está lá. E é destas coisas que eu gosto, fora dos corredores de quem decide e faz opinião)
.
.
Havia um vislumbre de esperança para cá da encumeada, como se, de repente, fazendo negaças ao nevoeiro, algo permitisse que a terra sorrisse para a semente. Talvez fossem meras tréguas, talvez ilusão, mas era quanto bastava. Ansiava-se, acima de tudo, por um sinal, dum raio que golpeasse o marasmo, dum qualquer movimento que mantivesse a chama viva.
De fora chegavam alertas, como se a angústia tivesse a mesma forma e conteúdo em qualquer lugar. Mas, apesar de agitados, os mensageiros não se mexiam. Lá no fundo aguardavam por algo redentor, como que apeados de qualquer decisão. Entregavam o seu desígnio à mercê do que viam, mas não entendiam.
Continuo, convicto, a acariciar a terra, num ritual que me alheia do passar do tempo. De vez em quando surge a pausa, o olhar em volta. Na zona inculta, mais além, os rosmaninhos, apesar dos resquícios da murcha flor, mantêm-se vivos, embora sem viço, como que ganhando ânimo para o desejado esplendor; a poupa, cliente habitual, sempre sensível ao mínimo movimento, teima em debicar onde parece que nada há; os pardais, sinónimo de omnipresença, parecem alheios a qualquer movimentação, fadados que estão para se sentirem livres em qualquer lugar; lá em cima, em atalaia permanente, uma ou outra ave de rapina, em elegante planar, tenta descortinar algo que valha a pena um mergulho.
Às tantas retiro-me, devagar, como se cada passo transportasse algo de precioso. Decorridos uns metros, poucos, insinua-se o ritual: volto-me, apoio-me na enxada e olho, satisfeito, para a terra remexida. Agradeço, mentalmente, a harmonia concedida e, sempre devagar, dirijo-me para casa. Estava na hora do banho, duma boa refeição, dum bom vinho. Depois, quem sabe, talvez a lareira me seduzisse para folhear um livro, ao som duma música calma.
.
.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A INQUEBRÁVEL LIGAÇÃO À TERRA

.
AC, Carícia
.
.
Sempre assim foi, tudo leva a crer que sempre assim será. Pelo menos até rebentarmos com este maravilhoso planeta, verdadeiro paraíso para quem gosta de sonhar, de se projectar, e que, apesar da incompreensão, continua a resistir ao nosso mau feitio, ou seja, à nossa incompetência. Mas poucos querem saber. Adiante.
Numa suposta douta sabedoria, baseada em egocentrismo,  gostamos de nos prover de confortos vários, renovados a cada passo. E, para garantirmos o estatuto, educamos os nossos filhos para serem empreendedores, inventores, opinadores, gestores, confessores, professores e outras cores, que na maioria das vezes rimam com dores e, uma vez por outra, com amores. Mas, renunciando às memórias, teimamos na mesma receita, sempre a mesma, aceitando de peito feito que o mundo está talhado apenas para os melhores. Predadores, está bom de ver. A outras visões, por inconvenientes, aplica-se o bullying social.
Em pausa lectiva - sou professor, entenda-se - de repente sou confrontado com uma disponibilidade de tempo pouco habitual. Que fazer com tal ventura? Em lista de espera há livros, viagens, reencontros com amigos, burocracias várias. Pouco tempo para uma agenda tão ambiciosa. Por entre  inadiáveis compromissos burocráticos, festejos e encontros familiares, que requerem muito estômago, um ou outro livro lá conseguiu subir à tona, em leitura aconchegada pela lareira, mas algo fazia falta. Lá fora o espaço piscava o olho, requerendo atenção: as sebes, obedecendo a leis naturais, tinham crescido; uma ou outra árvore ainda não tinha sido podada; alguns canteiros estavam a precisar de transplante de rosmaninhos; a terra precisava de ser cavada para a sementeira das ervilhas...
Um novo ano, a ganhar coragem no empolgar do estribilho, a necessidade de sempre de cuidar do que me rodeia. Havia, pois, que pegar nas ferramentas e, com delicadeza, prezar pela harmonia envolvente.
As sebes, apesar de atrevidas, podem esperar, que o cabelo não lhes vai para os olhos, mas a terra, ancestral ligação, requeria urgente atenção. E cavei, alisei, semeei, desencantando sorrisos muito próprios. Ela, a terra, não tem culpa que, em vésperas de regressar à escola, me doa o corpinho todo, pois andar horas e horas a plantar ervilhas de duas qualidades, sem pausas, não abona muito a meu favor. Mas só em princípio, porque a satisfação de andar por ali, em comunhão com a terra, por mais ores que suscitem, ninguém me a pode tirar. E, por mais que protestem as costas, continuo a sorrir.
.
.