domingo, 26 de maio de 2013

DIÁLOGO EM ESQUINA CONVERGENTE

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- Vejo-te contente, animado. Gosto de te ver assim.
- Ontem testemunhei algo que me reconfortou, que confirmou o que penso sobre o género humano. Por mais que alguém pise, que alguém destrua, há sempre um outro ao lado a tentar construir, a tentar dar lastro aos sonhos. E é essa capacidade que alimenta, que faz caminhar.
- Muitas vezes às cegas, não?
- É verdade que muitas coisas se fazem a tactear, mas que assentam numa vontade indómita de nunca desistir, nunca se conformar, como se a função primária de respirar alastrasse a todos os sentidos.
- Mas é preciso questionar, não achas?
- Claro. É sempre necessário questionar para entender, só assim que se forjam as verdadeiras crenças. De resto, os anseios são os de sempre. As asas, para voar, precisam estar em constante agitação.
- Repara, olha em volta. Há muita gente que apenas quer sobreviver, encontrar ânimo para o dia seguinte.
- Esse é um amplo mar de navegação, um enorme desafio à espécie. Quem navega demasiado à vista tem que começar a ousar mais, a descobrir-se, a exigir novos sinais. Assim, da forma como se instalaram, são presa fácil dos predadores.
- Talvez. Contudo, parafraseando a poeta, também há quem queira viver tudo numa noite...
- Pois há, mas também há quem queira ver mais longe, quem queira arriscar perder-se a procurar, aprendendo a aquietar o ego enquanto se dilui na imensidão. E um caminho, seja qual for a sua dimensão, deixa sempre vestígios.
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sábado, 18 de maio de 2013

VASSOURADAS DE GIESTA COM CEREJAS AO FUNDO

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Imagem do Google
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As cerejas, sempre tão desejadas, parecem prenhes de esperança, mas já nem a promessa do delicado rubro doce nos anima. No peito fervilha a insatisfação, o desespero, o sabor amargo da aura dos vendilhões do templo.
Na natureza, eterna confidente, ainda perdura o aroma da flor da giesta, mas a hora é de artesanar, de cantar, de agir. Uma vassoura de giesta, tecida com convicção, poderá ser fio condutor de vontades mil.
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Imagem do Google
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No meu país andam ganapos perversos à solta, que de tudo escarnecem, de tudo riem. 
No meu país esqueceu-se, nas voltas do medo, do efeito balsâmico de dois bons açoites.
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sábado, 11 de maio de 2013

AROMAS DE MAIO

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Frida Kahlo, Despertar 
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No vale todos se conheciam, todos identificavam a tosse e o riso uns dos outros. A brandura dos dias fazia-se em diálogos com plantas, trocas de chás e estórias pitorescas, equilíbrios bordados em padrões naturais.
Pedro chegara em Maio, quando os aromas inebriavam, incontrolavelmente, os sentidos. Fora incumbido de instalar um posto médico no vale, de levar luz a uma terra de luz. Chegara com uma mala cheia de sonhos, de tudo transformar, mas depressa percebera que, ali, o sentido da vida tinha outra configuração. Pouco sabiam da ciência dos manuais, é certo, mas pareciam conhecer, desde sempre, o murmúrio das águas e o rumor do vento. E, a pouco e pouco, fora transformando o conteúdo da mala. Já não queria tudo mudar, apenas acrescentar algo ao que lhe parecia a mais genuína fonte de viver. Equilíbrios geram equilíbrios.
Muitos anos se passaram. Quem o enviara instalara-se em torre de marfim, decorada com brinquedos caros, cada vez mais caros. O discurso mudara. Já não se falava em chegar às pessoas, mas sim em custos de infra-estruturas, em custos de manutenção. Nunca no custo dos brinquedos.
O posto médico fechou, mas Pedro não partiu. Divide os dias a ler, a tagarelar, a cuidar da horta, a assistir quem dele precisa. Por esta altura, nos fins de tarde, todos identificam o seu lento caminhar pelas ruas, a absorver os aromas de Maio.
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quarta-feira, 1 de maio de 2013

ACERCA DOS ENCANTAMENTOS

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Salvador Dali, Barco com borboletas
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Ia e vinha, sem pedir licença.
Quando chegava, mesmo no pino do Inverno, a paisagem do vale transfigurava-se, como se tudo tivesse a leveza da brisa estival do fim de tarde. Ninguém perguntava por onde andara, ninguém lhe cobrava a ausência. Davam-lhe espaço, sorriam-lhe, contentavam-se em respirar a sua aura.
Nesses dias de encantamento, de indefinível fio condutor, todos se deitavam mais tarde, todos se levantavam mais cedo. 
Não se demorava muito, que seres assim não querem amarras, apenas o tempo suficiente para que as luzes se mantivessem acesas. Depois prosseguia, em serena translação, semeando esperanças no ar.
Há pessoas assim. Não se sabe de onde vêm, que conjugações astrais as geraram. Delas apenas se sabe que nasceram para encantar.
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