sábado, 27 de fevereiro de 2016

AS VOLTAS DO POEMA

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Fotografia de AC
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Entre Gardunha e Estrela, no baixio dos campos sobranceiros ao Zêzere, há uma imensidão de vida que escapa aos olhares dos cultores de vidas apressadas. Por ali, sem qualquer esforço, avista-se a mais díspare passarada, da mais tímida à mais exuberante: melros, cegonhas, milhafres, perdizes, pintassilgos, papa-figos, guarda-rios, tordos, estorninhos, gralhas, toutinegras, pintarroxos, chapins, piscos, cotovias...
Num dia de deambulações, a espreitar possíveis janelas da alma, eis que, na placidez do caminho, surge uma manada de vacas, a pastar, em estreita relação com um bando de garças-boieiras. Parar era quase sacrilégio, não fosse perturbar a harmonia do local, mas a tentação foi mais forte. Ainda pensei em encontrar o melhor ângulo para a fotografia, mas o levantar de cabeça, em modo tranquilo, de uma ou outra vaca, levou-me a mudar de ideias. O intruso era eu. É já daqui, pensei. E, facto consumado, sem alaridos, lá segui o meu caminho.
As vacas e as garças, em atitude zen, ficaram para trás. Eu, sem pressas, prossegui na eterna busca do (im)possível poema.
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OS ETERNOS EMBARCADOUROS DAS PEQUENAS COISAS

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Fotografia de AC
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Há algo que nos impele, em permanente fermentação, como se, desafiando a improbabilidade, pudéssemos demarcar as pequenas coisas que apaziguam a nossa inquietação. Os deuses, eternos solitários, vão deixando algumas pistas. Também eles carecem de alimento.
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sábado, 20 de fevereiro de 2016

(IN)VERDADES

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Fotografia de AC
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A vida, na sua infinita capacidade de surpreender, parece, por vezes, caprichosa senhora, comprazendo-se em semear contraditórios sinais nos mais díspares cenários. Debitam, os feiticeiros da verdade, que ela é cultora da contrariedade sistemática para melhor discernir os merecedores de vislumbrar o apuro das suas vestes. E insinuam que, quando a tentação de a tentar contrariar se torna mais latente, surgem os dragões, enfurecidos, a depurar veleidades.
A verdade, a disponível, tem demasiados guardiões. Até as crianças, habitantes, até aqui, dum patamar em que tudo é possível desenhar, através do sonho, começaram a ser encerradas, de sol a sol, no muro dos medos. Os pais, por mais que se debatam, são, cada vez mais, reféns do tempo para pagar a factura do paraíso com que a verdade, a disponível, os seduziu.
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

CONVERGÊNCIA

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Fotografia de AC
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Quando a Estrela, sedutora, se adorna de alvas vestes, todos os caminhos parecem convergir para ela.
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sábado, 13 de fevereiro de 2016

O BAILE DOS (DES)ENCANTAMENTOS

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Fotografia de AC
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Chegavam, em noites de lua cheia, quando um leve rumor se insinuava nas frestas.
Bailavam, levemente, contornando as pedras da penitência. Cada movimento, como se obedecesse a uma vontade maior, parecia ter o impulso certo. Ora distante, ora perto, como se pretendessem restabelecer, na sua abrangência, o temor pelos segredos bem guardados. Aos homens o que é dos homens, aos deuses o que é dos deuses.
Eram seres do outro mundo, diziam, enquanto resguardavam os mais novos. Acreditavam na simplicidade dos elementos, mas a noite trazia-lhes pedaços de coisas que não entendiam. Era então que, no aconchego do lume, se forjavam histórias de sobrenaturais encantamentos, todas com rabo de fora, não fosse o diabo tecê-las.
Bailavam, levemente, abrindo janelas para outros portais. E desvaneciam-se no ar, deixando rastos de temor e espanto.
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sábado, 6 de fevereiro de 2016

TRÉGUA

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Fotografia de AC
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Ao deitar, no habitual acerto de contas com a vida, a frase surge, plena de luz, daquelas que empolgam, que tudo parecem querer dizer. Naquele momento tudo parece fazer sentido.
De manhã, ao levantar, tenta-se, em vão, resgatar a frase. Ainda se sente o aroma, tecida em preciosos fios, mas dela apenas a sensação de andar ali, por perto, a brincar às escondidas. 
O jogo perpetua-se, durante o dia, com a frase, atrevida, a insinuar-se no interregno das tarefas. A safada, obstinada, teima em rir-se, pondo a nu a fragilidade da capacidade humana. E o incómodo é tanto maior quanto a sensação de que a frase, aparentemente, poderia ser superlativa.
Quando o sol, em final de dia, invoca o apaziguamento dos deuses, libertando brevíssimas cores de entendimento, a sensação de desconforto dilui-se. Uma frase, num veio em contínua corrente, é apenas o que é: um leve esvoaçar de coisa nenhuma.
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