sábado, 31 de outubro de 2015

CHICO CAMBÃO

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Pablo Picasso, Cabeças Grandes
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Não era assombração, mas quase parecia. O Chico Cambão, para além de cambar, parecia esculpido para impressionar: olhos alucinados, repentes temerosos, gestos de pregador. E, no jogo de temores e superstições, assim se bastava. De tanto o colocarem à distância, e desde que acomodado - os temores sempre foram fonte de rendimento - pouco ou nada se sentia incomodado.
Num fim de tarde de verão, quando a canícula tendia a descansar, o Chico Cambão, numa das raras surtidas pela aldeia, trilhou caminho frente à tasca do Pinto. Muita gente por ali, era tempo de pausa. Os mais velhos, adivinhando animação, mantiveram-se na sua, que isto de muito viver também traz muito saber. Mas a mocetada, sem rédea nas hormonas, encetou baile de diabretes:
- Chico, no além há sempre a mesma roupa? Nunca te mudas?
O Chico estacou, devagar, como se quisesse contrariar os seus repentes. Aos primeiros sorrisos dissera não, mas agora não se calou.
- E tu? Por que te mudas, se as almas cada vez estão mais mudas? Por que falas em mudar, se estás sempre no mesmo lugar? Tu nem sabes falar, só sabes é ladrar!
O Chico, por entre imprecações da malta, lá seguiu o seu caminho, juntando mais uma acha à sua lenda. Desdenhando dos mais novos, os velhos, mansamente, como só eles sabem, deleitavam-se a desenhar sorrisos.
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sábado, 24 de outubro de 2015

TELA OUTONAL

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René Magritte, Princes of Autumn
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Os últimos fenos, temerosos da chuva, já estavam recolhidos, cortara-se a lenha para o Inverno, na despensa predominava o aroma a maçãs maduras. Tu, no entanto, parecias já não olhar. 
Doem-me os olhos de tanto já ver, argumentas, a consciência da mortalidade retira encanto à tonalidade das folhas. E, depois, perante o inevitável, para quê inventar novas formas de comunicar?
Eu sei que não é bem assim. Talvez, no fundo, queiras um pouco mais de atenção, mas noto que, com o passar dos dias, há um translúcido fio de desassossego que vai roendo, lentamente, o brilho dos teus olhos. Já nem o cheiro a pão, acabadinho de fazer, te faz exaltar os poemas vivos.
Enquanto lês, junto à vidraça, um tímido raio de sol vem aconchegar-te o regaço. Pareces não ligar, mas gostas. Então, de forma subtil, enquadras melhor o livro na suave luz. O gato, aproveitando a brecha, vai, tranquilamente, aninhar-se no teu colo.
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sábado, 17 de outubro de 2015

ÁGUA FRESCA

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John William Waterhouse, Diógenes
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Partiu, pleno de ilusão, com blocos e blocos de folhas virgens. Não queria deixar em claro todo e qualquer ínfimo pormenor da sua demanda.
À medida que sentia o pó, o sol e o frio a tatuar-lhe a pele, começou a escrever menos, muito menos. O papel, a pouco e pouco, começou a ter outras utilidades. Para além do que via, apenas interessava o que sentia. E, na repetição dos gestos dos homens, a monotonia começou a roer-lhe a alma.
Um dia, quando a secura dos lábios se tornava quase insustentável, uma mulher, surgindo do nada, ofereceu-lhe água fresca.
Quando retomou o caminho, recobrado, sentiu-o suavizado com as palavras do inesperado poema.
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domingo, 11 de outubro de 2015

DA ARTE DOS DISCRETOS MILAGRES

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Margarida Cepêda, Magia
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Olho para ti, maravilhado, enquanto te elevas para lá do bradar da multidão. 
Nunca as barricadas estiveram tão inquietas, mas já percebeste, com suor e lágrimas, que a unanimidade é mera figura de retórica. Aprendeste a sustentar-te nos teus passos, na paciente construção do teu edifício, na depuração do ruído circundante. 
Eu sei que, nos dias de sol, gostarias que as certezas fossem mais sorridentes, mas sentes, à medida que avanças, que a incerteza é a tua verdadeira companheira.
Lembras-te, por vezes, da raposa e do Principezinho, da necessidade de cativar, de seduzir. É quando percebes que, quanto mais as curvas do caminho tendem a ser solitárias, mais a cumplicidade e a partilha são premente terreno a cultivar. Sempre. Só então, no filtro dos homens e dos elementos, a magia pode acontecer.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

FAZ DE CONTA

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"O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas".
Charles Bukowski
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Passou, envolto em névoa,
D. Sebastião a cavalgar.
Sofria tanto a pileca,
Num mar de tanta seca,
Nada havia p'ra resgatar.
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São cromos, meu, são cromos,
Dizia um miúdo, a saltar.
Com o Pedro e o cruzado,
Mais o António rosado,
Já poucos nos hão-de faltar.
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Não faças p'la vida, não!,
Exclama um velho, de soslaio.
Nas voltas que a vida dá,
Para o estrangeiro, já!,
Tudo não passa dum ensaio.
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Para adornar a ementa,
Todos coçam o umbigo.
Que povo tão desnaturado,
A culpa passa-me ao lado,
Ninguém se receita comigo.
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E assim, feitas as contas,
Contas que estão por fazer.
As estrelas chispam nas foices,
Os burros nunca dão coices,
Faz de conta que é morrer.
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sábado, 3 de outubro de 2015

O PASTOR E A OVELHA ESPERTALHONA

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Naquele pasto, como em todos os outros, o mérito estava em conduzir todas as ovelhas na mesma direcção. No final, caso o pastor sorrisse, havia sempre música.
Uma ovelha, sentindo-se mais dotada do que as outras, achou por bem tirar partido da situação. Vós fazeis assim, porque vos dizem para fazer, mas eu só faço porque acho que devo fazer. Apesar do ribombar das palavras, cumpria sempre, mas deixava a dúvida nas outras.
Algumas ovelhas olharam-na de lado, mas outras, às escondidas, não fosse o diabo tecê-las, começaram a deixar-lhe as melhores ervas. A espertalhona, vendo-se lustrar, começou a organizar a sua teia de interesses. 
E foi assim que o pastor descobriu que, investindo em poucas, tinha sempre todas as ovelhas na mão.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O TEMPO DAS OMISSÕES

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Havia um rio. Sem nome. 
Com a chegada dos homens os baptismos multiplicaram-se, a crença baseava-se na perpetuação das designações. 
Agora, após mil essências de aprendizes de feiticeiro, as águas negras foram entubadas, soterradas, conduzidas para outro rio. Também negro. 
Longe da vista, longe do coração. O rio, por omissão, voltou a não ter nome.
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