.
.
AC, Gardunha vista do pequeno paraíso
.
A manhã acordou escura e fria, reivindicando grossas roupas de lã, enquanto convidava, sem qualquer favor, ao recolhimento. Como a Natureza, sabemos nós, é avessa a salamaleques, é melhor dizer que, onde se estampa convite, se deve ler obrigação.
A reserva de lenha, no abrigo, assoma ao espírito, mas sem necessidade. Ainda por ali há combustível, com a lareira a laborar diariamente, para cerca de um mês. Há, no entanto, que providenciar para uma nova leva de lenha grossa, de sobro ou de azinho, que de lenha miúda, para iniciar a combustão, há muita por aqui.
O Whisky, um canídeo que é hóspede habitual, parece não sentir o frio. Clama por companhia, de pau na boca, para exibir a sua perícia escapatória, numa espécie de toca e foge, em que o desafiado tem que fazer o papel de cobaia, a fazer de conta que se esforça para o apanhar. É claro que, para seu deleite, o cão leva sempre a melhor, enquanto o oponente arfa, rendido, mas sorridente.
No terreno circundante, para além da área ajardinada, da horta de verão já só sobram couves e alho francês. Há, pois, que preparar a terra para a horta de inverno, que já não é cedo para iniciar o cultivo dos alhos, das favas e das ervilhas. Tal como os dias, diz o ditado que, no dia de Natal, os alhos já têm um bico de pardal.
A neve na Gardunha, mais escassa, contrasta com a abundância de branco na Estrela, mais a norte, mas com a certeza de que os cerejais agradecem a dádiva, tamanha, para eliminar as diversas pragas. Deleito-me, num epicentro de delícias várias, grato por usufruir dum horizonte tão gratificante.
Vou ao abrigo para abastecer a lareira de lenha e, por ente os paus, deparo-me com uma vespa em estado, parece-me, de hibernação. E, a propósito de tudo, ou de nada, assoma-me ao pensamento o tal bichinho omnipresente, que a todos condiciona. Oxalá a neve o aniquilasse, ou, no mínimo, adormecesse, mas parece que o frio tem efeito contrário. É por estas e por outras que ninguém quer o termómetro na mó de baixo nos contornos da sua vida. Por inerência, penso no Natal que se aproxima, em que um "bicho" maior deveria ser foco canalizador dum amor mais elevado. Mas, rendendo-me à evidência, condicionados pelas grilhetas, já quase todos se renderam às luzes ofuscantes dum amor menor, vendido em episódios, redimensionado, a todo o instante, pelos números duma qualquer caixa registadora. Adiante.
Chegam-me, entretanto, notícias do Miguel, num vídeo em que o meu neto evidencia, a cada dia que passa, uma vontade genuína de abraçar o mundo que, paulatinamente, se vai desenhando nos seus sentidos, ancorado, sempre, numa imensa ternura. Sorrio, de peito aberto, pois há coisas que não têm preço.
E a vida prossegue, bem apoiada em convicções tecidas em esperança, enquanto inicio o despertar da lareira com recurso a duas pinhas, apanhadas no final do verão num dos muitos pinhais das redondezas.
A paisagem pode arrefecer, mas a alma, em momento algum, pode deixar de se tentar aquecer. É do nosso desígnio.