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Pablo Picasso, O poeta |
Pegou num monte de sapatos, observou-os com atenção e separou os que lhe pareciam em melhor estado. A alguns ainda se aproveitava a base, mas não durariam muito. Cada vez mais se socorria dos pneus de automóvel, em grande abundância nas redondezas, resquícios de emblemas da era dos combustíveis fósseis. Havia ali material para muito tempo.
O maior proveito via-se nas partes laterais. Os saltos, mais sujeitos ao desgaste, eram a parte que exigia maior atenção, mas ainda havia em stock muitos exemplares de salto alto, que agora já ninguém usava. A vida prática que levavam abolira por completo o supérfluo, e os saltos arranha-céus eram agora manancial para muitos outros mais adequados ao andar.
A princípio custara-lhe a entrar na morfologia do calçado, nada condizente com o antigo teclar, mas ganhou-lhe o jeito em pouco tempo. No acampamento, com o passar das luas, todos foram ganhando consciência do fundamental, e uns sapatos robustos e resistentes satisfaziam qualquer um. Mas não a ele. Tinha alma de artista, diziam, e sentia necessidade de pôr a sua marca naquilo que fazia.
Quando lhe sobrava algum tempo começou a tentar dar vida aos sapatos. Aprendeu a gravar figuras no couro, a amaciá-lo, mas poucos ligavam aos seus devaneios, preocupados que estavam com a sobrevivência.
Ana, perfeitamente integrada no espírito do acampamento, só recorria ao sapateiro quando os sapatos que trazia já se revelavam inúteis. Chegado o momento, um acto banal tornou-se a porta de entrada na alma do artesão. Quando viu uns sapatos, mesmo à sua medida, com uma flor gravada no rosto, não hesitou: calçou-os e mirou-os como coisa preciosa. Na luta pelo sentido das coisas, aprendera por ali que muitas são as formas de fazer poesia.
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E assim é a vida, se deixarmos os "sapatos" jogados esquecidos deixaremos para trás a alma deles como meros objetos que não servem mais.
ResponderEliminarAmei.
bjs
Ana pés de palavras escreve no chão, e a gente encontra, vagando pelo interior, esses trechos de viagens, prosas e poesias.
ResponderEliminarVocê é mesmo um escritor :)
beijoss
"Todo o tempo é de Poesia..." sobretudo em tempos emergentes em que é preciso mudar o jeito de nos calçarmos!
ResponderEliminarCalcemo-nos então com uma flor gravada...no rosto do sapato!
Abraço
Sapato me apertam os meus pés.
ResponderEliminarbeijos
Gostei.
ResponderEliminarA poesia está em tudo e em todo o lado.
Bom fim de semana.
Bjs
Muitas são as formas de fazer poesia, e muitas são as formas de felicidade, desde o essencial ao supérfulo, com tudo o que está no meio.
ResponderEliminarMuitas são as formas de fazer poesia, este texto e este blog contam-se entre essas formas.
Gostei muito das mensagens que li ao longo do texto, todas elas para reflectir!
Bom fim de semana!
Se fores falar sobre uma pedra jogada a esmo, imperceptível para olhares comuns, se fores falar do nada, do que nem existe, ainda assim a poesia se fará pelas tuas palavras.
ResponderEliminarImensa admiração.
Beijo!
Viver a vida a sorrir é das formas mais inteligentes de enfrentar a vida!
ResponderEliminarMesmo quando se tem de viver apenas com o essencial, a beleza e a poesia são fundamentais.
ResponderEliminarAbraço.
no acampamento
ResponderEliminarprodigioso é o sapateiro
e Ana
belo, é tudo o que tem rosto
um abraço, AC!
No fundo, o sapateiro era um poeta que sabia que nem só com palavras se faz poesia. Bonito, AC. Um beijo!
ResponderEliminarA minha é uma luta inconstante de coração sangrando de sofrimento pelas coisa que fazem sentido na minha vida. infelizmente não consigo ver,nem sei se alguma vez voltarei a ver o meu sorriso.
ResponderEliminarBeijinho e uma flor meu amigo
Olá, AC!
ResponderEliminarBela imagem, esta do sapateiro poeta, escrevendo os seus versos nuns humildes par de sapatos.
Bom fim de semana; abraço amigo.
Vitort
há tantas formas de se fazer poesia, tantos espaços para os versos, e tantas mãos para o labor poético,
ResponderEliminarabraço
Faz-se poesia quando o simples se torna belo.
ResponderEliminarMágico!
bjs AC
cvb
Puxa AC,não sei dizer qual o melhor trabalho deste artesão : consertar os sapatos dando-lhes vida nova ou se imbuído desta simplicidade tornar-se mágico das palavras, criativa comparação que você traduziu neste conto ...O cotidiano também é poesia.
ResponderEliminarE esses são os momentos mais marcantes da nossa vida...
ResponderEliminarO reencontro com a nossa alma, por vezes esquecida, com a simplicidade da beleza...mesmo que os outros considerem banal...
Lindo...
Beijos e abraços
Marta
Pequenas coisas que nos fazem crescer...:)
ResponderEliminarBeijos AC
E como é lindo quando chegamos a esse entendimento! Lindo demais!!abração,chica
ResponderEliminarAC, meu queridão, um belíssimo texto!
ResponderEliminarHá na poesia um universo de infinitudes, cabe ao olhar sentir as claridades e sombras.
Um bj imenso, poeta
Surpreendente essa sua lapidação da sensibilidade.
ResponderEliminarUm sapateiro poeta!...
Sempre haverá uma "Ana" para perceber isso!
Boa semana!
Beijinhos.
Minas.
♫♫.•*¨*•♫♫¸
Lua de tantos suspiros e tantas poesias...abraços de boa semana.
ResponderEliminarTemos que nos adaptar aos novos tempos sem perder o gosto e a sensibilidade, não é?
ResponderEliminarA flor encanta sempre. Picasso foi uma escolha interessante... o prisma em que queremos ver.
Beijinho. :)
Enquanto houver vida haverá poesia pois ela alimenta-se dos olhares e sentires do sangue que pulsa...
ResponderEliminarBeijinho
Que maravilha. Voce conseguiu simplificar e entender a alma poetica do artesão principalmente aquele que faz sapatos tão belos.
ResponderEliminarcom amizade e carinho de Monica
A poesia tem origem na alma e se exprime de muitas maneiras,Vê-se muita poesia na arte das mulheres que fazem rendas,por exemplo...no seu sapateiro que soube expressar a delicadeza de uma flor que entrou de cheio no coração da moça.Muito bonita a imagem.Uma menina do "meu tempo" nunca esqueceria o seu primeiro par de sapatinhos de "salto alto".
ResponderEliminarUm abraço
Realmente, basta querer, que a gente consegue enxergar poesia em tudo.
ResponderEliminarObrigada, amigo, por escrever coisas tão lindas!
:)
Receba meu abraço afetuoso.
Tenha uma semana bem linda e feliz, repleta de poesia.
Cid@
Surpreendente!
ResponderEliminarPara ler e guardar na vitrina das coisas belas.
Um beijo
Eu gosto do que você escreve, AC.
ResponderEliminarA poesia está em todo lugar... só precisa de olhos pra ver e alma pra sentir.
Feliz semana, poeta!
Com o teu toque poético e grande sensibilidade,transformas algo vulgar num belíssimo texto!
ResponderEliminarBjs
para ler e reler querido..
ResponderEliminarteu escrever encanta..
beijos de carinho e saudade.
Aquilo que não faz sentido é procurar em tudo sentidos :)
ResponderEliminarBeijinho
Pelas mãos do artesão vemos a beleza da sua alma. Um jeito silencioso de fazer poesia. Lindo texto!
ResponderEliminarconsertava sapatos com mais amor e talento que muitos concertos de rabecão...
ResponderEliminaro texto é uma deliciosa metáfora.
abraço
A arte que dá mais sentido a existência. Bela forma de narrar esse salto da humanidade. O ser fazendo do barro uma existêncao apenas contemplativa, a cigarra que canta para tornar o trabalho da formiga menos tedioso. Muito bom!
ResponderEliminarA ARTE que nos toca a alma... Expressões que somente os sábios e os sensíveis são capazes de compreender em seu todo, ou pelo menos quase todo.
ResponderEliminarAbraços e grata pela presença no IN...
Muitas são as formas de fazer poesia e arte...aqui está uma prova...*
ResponderEliminarA poesia está na alma , por isso ela se manifesta num sorriso , olhar , silêncio ...
ResponderEliminare claro está , num texto que até pode parecer simples .
Um beijo AC ,
Maria
E não é que tem razão? A poesia pode estar no desabrochar duma flor, no sorriso de uma criança, no olhar de um idoso ou até na gravura de um par de sapatos.
ResponderEliminarUm abraço e uma boa semana
Meu querido Poeta
ResponderEliminarÉ mesmo isso...a poesia encontra-se nos mais pequenos gestos, nem só que rima é poeta.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Tudo tem seu tempo...
ResponderEliminarBeijo Lisette.
Grande amigo AC,
ResponderEliminarque conto precioso!
A narrativa, a linguagem, a gramática, tudo maravilhoso e impecável.
Tua escrita em si já é uma poesia.
Há tempos não lia algo assim tão saboroso.
Parabéns pela técnica!
Abraços do amigo de além-mar!
Um belo conto. Bem escrito e sem palavras rebuscadas. Trata-se de um género de escrita que, confesso, não domino.
ResponderEliminarMuito belo meu amigo, que a poesia seja sempre essa porta de entrada da alma,,,dos bons sentimentos...abraços fraternos de bom dia.
ResponderEliminar, Num quarto do hospital onde três doentes oncológigos faziam pela vida, no dia em que um deles, muito jovem, teve alta, a sua mãe trouxe para os outros uma trança de cebolas. Houve poesia.E lágrimas!
ResponderEliminarPS- Não consegui submeter os seus comentáriosamigo fiel. Um forte abraço.
IBEL
Era um sapateiro com alma de poeta.
ResponderEliminarbjs
Mais um belíssimo texto onde a sensibilade é uma constante.
ResponderEliminarUm sapateiro pode ser um POETA maior.
Beijo
Ná
A poesia está mesmo por toda parte. Um texto sólido e delicado.
ResponderEliminarBeijos.
Powwow e bringer com aa palavers, beijo Lisette.
ResponderEliminarGosto desses "respirares" AC
ResponderEliminarsem comentarios, a poesia é mesmo pra comer como diz o poeta... não pra explicar.
um abraço e saudade de ti
Oh, sim...a poesia não se faz apenas de e com palavras...muito do que nos rodeia é "poesia" se a soubermos apreciar!
ResponderEliminarEXCELENTE!
Pela longa ausência minha,"fui" à Lua Nova I...para respirar mais beleza poética, além de outras paragens anteriores...Tudo tão lindo!
ResponderEliminarUm beijo,
da Lúcia
Tenho para mim AC, que a diferença entre um poeta e uma aprendiz de poeta como eu, é que o poeta vê poesia em todo o lugar. Ainda me custa muito encontrá-la e as vezes quando encontro, as palavras não alcançam e eu me canso.
ResponderEliminarSeu texto é belíssimo e grata pelo carinho.
Beijinhos.
AC,
ResponderEliminarAcredito que a gente só conhece uma pessoa, quando vamos à casa dela, mas, é nos sapatos das pessoas que eu consigo decifrar sua personalidade real. Eles retratam quem o outro é.
Bela imagem! Adorei!
Saudades!
O tempo está a correr de mim...
Suzana/LILY
Caro Agostinho,
ResponderEliminarQue sapatos em forma de pedra angular.Diamante em bruto nas tuas mãos.
Abraço,
Nos momentos mais simples, nas coisas mais insignificantes é quando pode nascer uma grande obra.
ResponderEliminarGostei imenso.
Beijinhos
Fascinante, AC! A poesia nasce de uma sutil delicadeza.
ResponderEliminarBeijo,
I.
Lindo este seu texto. Muito interessante esta sua forma de «fazer sapatos. Abraços
ResponderEliminarUm belo sábado pra ti meu amigo...abraços.
ResponderEliminarÉ caso para dizer...encontras poesia nas mãos do sapateiro...no avental da cozinheira...nos olhos do pescador...haja estética, bom gosto...sentido de humor, arte e a tua "pena" encontra logo terreno ideal para a construção de belíssimos textos!!!És o maior!!!:) Beijo
ResponderEliminarFeliz Páscoa!!
ResponderEliminarEu, cá do meu canto, peço (Je vous en prie, vraiment) que deixe o texto andar mais. Ana cruzou o portal do Labirinto? Fico esperando, ansioso. Estou seguindo, e aprendendo. O seu texto não tem defeitos. Além de provocar. Ora, ora: "dar vida aos sapatos"... Só tenho que parabenizar e agradecer por nos mostrar.
Grande abraço.
Gilson.
Quantas estórias encontram-se sob as solas de um par de sapatos! E o bom artesão da palavra sabe muito bem como contá-las, não é, Agostinho?
ResponderEliminarbeijo :)