sábado, 12 de setembro de 2009

A MULHER QUE GOSTAVA DE LIVROS

.Nunca teve muita paciência para aturar as conversas das colegas, tinha mais que fazer que estar a falar da vida alheia. Gostava de sair, ai se gostava, mas as suas debandadas cingiam-se às compras do dia a dia. Para além disso satisfazia-se com uma passagem rápida pela pastelaria, onde uma bica bem quentinha lhe reforçava o ânimo. Às vezes concedia dois dedos de conversa à D. Fátima, que lhe contava as últimas novidades, e ala para casa, que a vida não se arranja no paleio.
Dentro de paredes era Maria que fazia e desfazia, e o marido há muito se resignara a tal facto. Conhecia bem a determinação e a energia da mulher, e não adiantava lutar contra tais armas. No fundo admirava aquela força da natureza, que delineava o contorno das suas vidas de forma implacável.
Os filhos conheciam-lhe bem a voz de comando, e foi-os instruindo no caminho do trabalho e do esforço. O percurso deles foi-lhe mostrando que tinha razão.
Do dinheiro do orçamento familiar, rigorosamente gerido, apenas se lhe conhecia uma extravagância: comprar um livro de vez em quando. Lia-o à noite, depois da lida da casa, e o marido nem sempre entendia aquela bizarria. Era a única altura do dia em que a via longe dali, como se a sua realidade controlada, por momentos, não existisse.
Mas os anos já iam pesando, apesar de continuar mexida e desembaraçada. Com os filhos em casa própria, começou a ter mais tempo para si, e a dar largas ao seu gosto pelos livros. Lia, lia muito...
O neto começou a frequentar a casa, adoçando-lhe os dias, fazendo cócegas àquela capa de austeridade. O companheiro, porém, via-lhe nos olhos uma espécie de insatisfação. Bem tentava sondar, mas um seco "não se passa nada" cortava toda e qualquer inquirição.
Uma manhã o marido saiu cedo. Maria, habituada ao seu rosto tranquilo e resignado, notou-lhe uma determinação pouco habitual, mas encolheu os ombros. Retomou a leitura de "Veneza", de Jan Morris, e não pensou mais no assunto.
Depois do almoço, após arrumar a cozinha, voltou para a sua leitura. Ajeitou a almofada, sentou-se, e esboçou o gesto maquinal de pegar no livro. Só então reparou no invólucro, com o logotipo de uma agência de viagens, deixado em cima da capa do livro. O marido olhava, num misto de apreensão e ansiedade. Mas, quando lhe viu o brilho de satisfação ao ler a palavra Veneza, percebeu que tinha acertado em cheio.


4 comentários:

  1. Sabe que quando comecei a ler o texto me identifiquei com esta mulher Maria/mãe enégica, gulosa,determinada, dominadora do seu mundo familiar e feliz na companhia dos livros? E vi também a minha mãe e a sua(?)"Os filhos conheciam-lhe bem a voz de comando, e foi-os instruindo no caminho do trabalho e do esforço. O percurso deles foi-lhe mostrando que tinha razão".Mas pode ser também a companheira. Ainda é tudo tão misterioso...,tal como Veneza...
    Bela homenagem,AC.É ela, não é?
    Que bela escrita arejada.Ah Veneza!Ah,as mulheres! Ah, a saudade!!!!
    Siimplesmente lindo.Simplesmente Maria.


    Ibel

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  2. Pois também eu conheço algumas "marias", eu inclusivé.É tanta a azafama e o poderio que o pouco tempo que tenho ,é para gastar com visitas a blogs e a livros que me digam e espelhem o k me vai na alma!!
    um abraço
    luisa

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  3. Há alturas assim, em que resolvemos colocar cá fora aquilo que há muito escondemos.Creio que é o caso deste novo "dono de letras", ilustrador com palavras em vez de pincéis e tintas (mas que também domina, não é?). Parabéns.

    Melo

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  4. Não sei se escrever é um dom ou resultado de esforço, o que sei é que acho lindo a forma como os escritores trazem para o papel a realidade vivida e como achamos nossas pessoas amadas ou não nos textos assim como nós mesmo!!!

    Mergulhar em seus escritos é um prazer, um prazer que algumas vezes me deixa muda e outras me leva a comentar \o/

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