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A seara ondulava, obedecendo aos caprichos do vento, salpicada aqui e ali com o vermelho das papoilas. A colheita prometia fartura, e já se adivinhava o chiar do velho moinho de água, entretanto recuperado, a debitar a farinha de todos os contentamentos.
A quinta, desde que chegaram, parecia outra. As paredes da velha casa, devidamente reparadas, sustentavam agora um sólido telhado. Não era a casa de ninguém, que o conceito de propriedade estava bem definido, era a casa de todos. Ali reuniam, ali funcionava a escola, ali estavam todos os livros que trouxeram. De dinheiro não se via rasto, todos sabiam que não era nessa base que deviam construir o seu futuro.
Nas reuniões procuravam esbater as diferenças, e às vezes a discussão era acalorada. Mas acabavam sempre por se entender, pois todos respiravam o sentido de partilha. O dia a dia ensinara-os, mais que a teoria, que tudo era relativo, estavam mais interessados em encontrar pontos de encontro, por mais ínfimos, que em provocar tempestades. Conviviam bem com as diferenças.
Em volta novas edificações foram surgindo. Pedra não faltava por ali, e alguns descobriram, pela primeira vez, um particular deleite na construção das paredes de xisto. Talvez fosse a ideia arreigada de estarem a começar algo, talvez fosse a ideia do cultivar do espírito de partilha. Ou ambas em simultâneo. O certo é que, a pouco e pouco, os redutos foram surgindo. Para cozinhar, para dormir, para guardar alfaias e colheitas.
Tiago e Diana eram diferentes, a inquietação vivia neles como quem respirava. Ela acabara por partir, não resistindo às sugestões do para lá do sol-posto, mas ele ficara. Não fazia nada de especial. Ajudava a semear, mas não mondava, não moía. E falava pouco. Quando o fazia falava de angústias, de equilíbrios, de dores de alma. Estando sempre presente, o seu olhar perdia-se algures. Mas encontrava-se no voo dos pássaros. Era capaz de subir e descer montes só para acompanhar o voo de um melro, prender-se naqueles movimentos que o fascinavam. Também o contacto com as crianças o tornava mais atento, mais doce, os olhos chegavam mesmo a sorrir. Todos respeitavam aquela figura inquieta, desassossegada, sabiam que era a fronteira da sua parca segurança. Não fazendo, fazia muito, era o seu cata-vento. A sua presença lembrava-os dos limites daquele ermo, que a cadência das coisas vai muito para lá de nós. E aquele sentir, quase de forma inconsciente, irmanava-os na vontade de fazer algo por eles próprios.
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Gosto da tua narrativa. Vejo detalhes, sinto o desassossego das almas, tanto da que foi quanto da que ficou. Penso.
ResponderEliminarUm grande bj querido amigo e bom final de semana
Gostei de tudo mas sobretudo de "Conviviam bem com as diferenças."
ResponderEliminarCreio que isso faz falta em todo o lado que estivermos!
Abraço
A (re)construção de uma sociedade utópica, com a saudade doentia(?) do futuro?
ResponderEliminar"Não fazendo, fazia muito, era o seu cata-vento. A sua presença lembrava-os dos limites daquele ermo, que as cadências das coisas vão muito para lá de nós."
ResponderEliminarNão fora a beleza do texto integral- quase me mudo para esse recanto- o excerto acima já justificaria esse post.
"Gosto de amora comida
com sol,
a vida chamava-se :
agora." Guilherme de Almeida - hai-kai
Bom domingo, AC. Beijooooo.
A inquietação! São tantos aqueles Tiagos e Dianas que existem, apenas hoje não se conseguem entender, muito menos sentir o sentido da partilha, perdem-se valores que infelizmente são importantes demais.
ResponderEliminarBom fim de semana meu querido amigo
Beijinho e uma flor
Se não fizermos por nós... não haverá quem faça.
ResponderEliminarna perfeição de um paradigma em que tudo se bastava e era partilhado
ResponderEliminarvem o ser inquieto que desinquieta, mas define os limites e faz-nos pensar para lá deles
eu gosto do Tiago
um beijo, AC
Muito para lá de nós
ResponderEliminar... e já
e tanto
À luz de valores parecidos, é tão verosímil o que contas que me sinto fazendo parte desse grupo. Sinto a partilha.
ResponderEliminarRecebo tuas palavras e, em troca, te devolvo emoção...
É pouco?
É o que posso, deste lado do teu texto.
Excelente texto. O mundo seria outro se a humanidade fizesse essa partilha também. Ao Tiago não adiantaria sair ao encontro do mundo. O seu desassossego, segui-lo-ia.
ResponderEliminarUm abraço e bom Domingo
Olá, AC... gostei desta quinta, do sentimento de partilha e sobretudo do "Tiago" pois eu acho, que tudo o que ele faz é especial... emocionou-me! Parabéns! Um beijinho com amizade e carinho!
ResponderEliminarAmigo AC,
ResponderEliminarO homem é capaz de conquistar e se adaptar à natureza, mas é incapaz de aplacar o egoísmo do próximo.
O conto está uma pintura notável com a valorosa insígnia AC.
Abraços e ótimo fim de semana para ti e família!
Há sempre essa inquietação, esse vento que sopra do lado contrário ao que se espera...
ResponderEliminarMas é bom sentir esse vento - lembra-nos os limites...
Interessante....
Beijos e abraços
Marta
Seria uma idealização "mágica" da construção da sociedade onde todos teriam seu lugar e suas diferenças respeitadas e onde o spírito de liberdade fosse respeitado sem cobranças...com lugar até para poesia! Fosse assim...
ResponderEliminarUm abraço
AC,
ResponderEliminarFiquei muito emocionada ao ler este conto.Apesar de ser Diana eu não partiria. Ficaria e com o Tiago exercitaria os valores que acredito ser importantes neste mundo que vivemos:A partilha , o respeito a liberdade aos sentimentos .
Parabéns, você arrasou!
Abração.
Uma bela história de amor meu amigo...que infelizmente termina com a partida,,,o adeus...abraços de boa semana pra ti...
ResponderEliminarconstruir é um trabalho que irmana, ação de alma e gesto,
ResponderEliminarabraço
Mesmo os lugares mais perfeitos albergam inquietações...
ResponderEliminarUm abraço.
Mesmo os lugares mais perfeitos albergam inquietações...
ResponderEliminarUm abraço.
AC,
ResponderEliminarCriou uma utopia, como tal um mundo o mais próximo do perfeito. Mas todos os mundos têm um limite, uma fronteira e o para lá dela é sempre aliciante. Partir em constante procura, o desassossego eterno, para quem parte e para quem fica. Todavia, só alguns são senhores desta inquietude.
Parabéns pela metáfora. Devia publicá-la.
Beijinho.
Ressalta a aproximação do homem às origens, a vida no contacto com a natureza, em pequenas comunidades. Um caminhar na berma dos desassossegos.
ResponderEliminarSomos levados até ao movimento contracultura dos anos 60,(comunidades hippies) em que os jovens procuravam um modo de vida, de costas voltadas para uma sociedade demasiado tradicionalista, como forma de protesto contra as práticas político-sociais da época. Defendiam uma espécie de socialismo-libertário ou estilo de vida nómada.
John Lennon, claro!
Um beijo
Gostei muito
Lídia
As histórias nem sempre terminam como gostaríamos!
ResponderEliminarMas a vida é mesmo assim!
Um belo ensaio literário.
Um abraço,
É incrivel, mas quando te leio viajo em devaneios...São magicos teus textos...
ResponderEliminarBjos achocolatados
Muito lindo este conto de partilha e paz, que me fez lembrar alguns sectores de vida quase comunitária, que frequentei algum tempo ali para os lados da Beira Alta, zona de Sabugal.
ResponderEliminarUm tempo em que o dia de hoje é o dia em que se vive e se é feliz, é o momento de estar com os outros e de ser.
"Você pode dizer
Que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu tenho a esperança de que um dia
Você se juntará a nós
E o mundo viverá como um só."
Assim, sem conceitos de raças ou fronteiras, assim num sentimento de paz, há sempre alguém que se inquieta para a conquistar e que é a força e o pára-raios da comunidade.
Muito belo.
Beijinhos
Branca
delicadeza que não se desfaz, não se desmancha mesmo em meio aos tumultos do desassossego...
ResponderEliminarlindo, AC :)
beijoss
Voltei a ler o título, para confirmar se ali não estaria a palavra "utopia". Talvez esta não seja atingível, mas creio que algum tipo de contra-cultura necessita emergir.
ResponderEliminarGostei muito do seu texto, AC. Apeteceu-me continuar a ler...
Um abraço de boa semana
A vida é cheia de histórias que nem sempre terminam como gostaríamos!
ResponderEliminarSempre excelentes os teus textos!
Bjs
AC, acho que você escreve histórias como quem escreve música. Leio nelas mais sentimentos do que significados concretos. As vezes me perco na leitura, mas nunca no encantamento de ver o bailado que você faz tão harmoniosamente com as palavras. Um abraço, querido.
ResponderEliminarBelo belo texto, AC. Sensível, humano, delicado.
ResponderEliminarAbraço grande.
Há locais físicos exatamente assim e outros dentro de nós, se soubermos levá-los.
ResponderEliminarAbraços poeta e uma linda vida!
Uma verdadeira utopia!
ResponderEliminarA inquietação...o desassossego...gostei do Tiago.
Belo texto AC
Beijo :)
Uma bela segunda feira pra ti meu amigo...abraços.
ResponderEliminarGostei do que senti, para além da vontade de viver neste sítio.
ResponderEliminarE, também às vezes chamo-me Tiago :)
Beijinho
As searas só são completas, se nelas houver, aqui e ali, o salpico colorido das papoilas.
ResponderEliminarExcelente metáfora esta, construção bela de inspiração serrana.
Um beijinho
será este o lugar que dizes ter encontrado?
ResponderEliminar[construir e depois ficar a ver partir, e porque não partir também? talvez este seja o lugar esperado...]
beijinho
Sublimes suas palavras e todo o sentimento que delas emana. Adorei.
ResponderEliminarBoa semana amigo, beijos,
Valéria
Lindo texto AC.
ResponderEliminarBelíssimo sentimento de partilha! São valores que foram plantados e que permaneceram.
Abraços,
Mariangela
A.C.terminei a leitura com lágrimas que brotavam espontâneas e reconhecidas . Me vi no teu texto, há algum tempo que já havia percebido como "pessoas" são referências comportamentais que tocam e impulsionam quem está ao seu redor, e as vezes não nos apercebemos disto...Você de forma magistral foi um fio condutor que expôs de forma poética e linda o quanto todos são importantes. Abraços.
ResponderEliminarUm retrato perfeito de tantos desassossegados que vivem neste país.
ResponderEliminarbeijinhos meu amigo
a poesia é Utopia... que bem necessária se torna.
ResponderEliminarviva portanto a Utopia.
abraço
Tiago e Diana, inquietos ao extremo? Já gosto bem deles...
ResponderEliminarAssim como dessa tua escrita que nos permite mergulhar e ser parte do cenário.
E que cenários!
Beijos, querido.
desassossegos e memórias.
ResponderEliminarvivências e historias - nossas - e de outros como nós.
belo texto como sempre.
beij
Hola!
ResponderEliminarExcelente narrativa!
Levou-me a refletir sobre a vida, valores, e como nos posicionamos diante do que nos é oferecido.
Viajei para este cenário tão lindo!
Bjs.
(re)Construir várias vidas distintas com apenas uma alma. Utopia que me encanta!
ResponderEliminarUm textaço pra ninguém colocar defeito, meu amigo AC.Sua sensibilidade me espanta!
bj imenso, poeta
Uma bela narrativa. Viajei. Um beijo carinhoso em você. Até.
ResponderEliminareu viajo contigo
ResponderEliminartb subo e desco montanhas
kis .=)
..."a farinha de todos os contentamentos". Suas imagens poéticas, são tacadas de mestre, AC. Um beijo!
ResponderEliminar"...
ResponderEliminarEstando sempre presente, o seu olhar perdia-se algures. Mas encontrava-se no voo dos pássaros. Era capaz de subir e descer montes só para acompanhar o voo de um melro, prender-se naqueles movimentos que o fascinavam. Também o contacto com as crianças o tornava mais atento, mais doce, os olhos chegavam mesmo a sorrir.
..."
Metáforas que ombreiam a calma do campo e nos trazem sorrisos de esperança...
Adorei o texto.
Grata.
Um abraço
Mais redutos como estes eram tão precisos!!! Soberbo conto, como sempre!
ResponderEliminarBeijinhos,
Madalena
Olá.
ResponderEliminarSeu blog é muito legal,conteúdo interessante e muito bem escrito.
Parabéns.
Até mais
AC, amo esse estilo tão envolvente, tão peculiar e perfeito.
ResponderEliminarO modo como descreve cada detalhe, da uma certa magia, um "q" todo seu aos textos q nos são presentes unicos!
Bjo
Simplesmente fantástico! Uma narrativa perfeita com o sabor de todos ingredientes. Parabéns pela excelente qualidade do texto.
ResponderEliminarAbraços
Meu querido Poeta
ResponderEliminarComo sempre ler-te é uma viagem por dentro de tantos sentires...tantos anseios e tantos voos que gostariamos de fazer.
Um beijinho
Sonhadora
Mais interessados em encontrar pontos de encontro *.*
ResponderEliminarUm belo final de semana pra ti meu amigo...abraços.
ResponderEliminarObservar o voo dos Melros como quem observa os próprios sonhos.
ResponderEliminarVc me emociona, AC.É lindo o que escreves.Benditas sejam essas mãos e essa inspiração.
Beijinhos, querido e ótimo fim de semana.
Adoro ler os seus textos.
ResponderEliminarBoa semana!
Beijinhos.
Brasil.
¸¸.º°❤♫♫♪¸¸.°
°º✿⊱╮
Meu amigo todos iguais e todos diferentes. Uns necessitam de ver o que existe realmente para além do horizonte e saem nessa procura, como foi a Diana. Outros criam raízes e necessitam apenas de divagar nas asas da imaginação, tal como o Tiago. Há que respeitar a maneira de ser de cada um. Um texto brilhante como sempre.
ResponderEliminarBom domingo e uma excelente semana.
Beijinhos
Maria