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Fotografia de João Sargo
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Cabisbaixo, sentado frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o
eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da
companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou
outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma malga e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, já vivera o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam de acordo com a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma malga e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, já vivera o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam de acordo com a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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Lindo, leve e profundo ao mesmo tempo.Deu para entrar no cenário e imaginar Felismino...abração,chica
ResponderEliminarPoeta , um presente , neste domingo, saber da existência sábia do Felismino . Obrigada . Beijos
ResponderEliminarTambém eu quero ser senhor do meu silêncio.
ResponderEliminarUma grande satisfação visitá-lo, AC.
Grande abraço.
Gilson.
Que feliz era Felismino assim!
ResponderEliminarBeijos dos Alpes com votos de um domindo sereno!
Bom dia poeta...Nem sempre conseguimos ser donos da própria vida e do destino. Acho que a solidão é vocação de poucos, mas o que me parece e que ele mesmo que longe de pessoas era feliz .Às vezes estamos rodeados de pessoas e nos sentimos na maior solidão do mundo, já me senti assim várias vezes. Tenha um ótimo domingo, aqui já com carinho de outono mesmo. beijos
ResponderEliminarBom dia amiga
ResponderEliminarUma belíssima história. Nem sempre a companhia das pessoas é capaz de nos tirar da solidão. Felismino era feliz pois era sábio o suficiente para se encantar e se envolver pelas belezas ao seu redor.
Um dia feliz
Beijos
Amigo, Gracita, amigo! :)
EliminarUm dia feliz para si também!
Lindo...lindo...lindo...
ResponderEliminarFelismino nao é solitario... ele encontrou a si mesmo... nao precisa de mais nada...
muito bom :)
ResponderEliminarSaudade da sua escrita cinematográfica, AC, que nos faz viajar por cada palavra, deliciosamente postada uma após a outra. Lindo, lindo! Muito bom estar aqui, de volta! Beijo!
ResponderEliminarUma história com brilho humano.Aqui recordei a casa dos meus sogros e a sua vida solitária naquelas encostas de Penedono.
ResponderEliminarCasas com este tipo de pedra e de pessoas feitas ao sofrimento.
Um homem que a si se basta! um sábio que possui todas as estrelas do firmamento e pelo jeito nenhuma ambição ou mágoa.
ResponderEliminarUm abraço
Ler cada linha, visualizando a cena bucólica e solitária. viajei nesse conto poético. Muito bom!
ResponderEliminarAcho que esse foi o primeiro texto que eu li por aqui. Muito bom!
ResponderEliminarxx
Agostinhamigo
ResponderEliminarPelo andar ca carruagem que nos proporciona esta gente que é poder, a tua estória, aliás belíssima, rapidamente terá em cada um de nós, Portugueses, um intérprete ainda que contra vontade. Fotografia deslumbrante.
Abç
O Felismino com ele próprio, sem medo, sem solidão, sem a selva da vida...
ResponderEliminarFui transportada para aquela aldeia e conheci o Felismino, gostei dele.
AC, que escrita fantástica!
Um texto muito bonito!
ResponderEliminarE uma foto que é uma maravilha!
Boa semana!
Demorei-me na leitura, como se filmasse em câmara lenta. Visualizei, mas, sobretudo, revi um retrato de tantas aldeias abandonadas, onde os "Felisminos" fiéis aos sons da terra desprovidas dos risos cantantes de crianças, teimam em ficar. São os meus heróis da atualidade pois vivo num interior desertificado, onde as políticas teimam em retirar cada vez mais serviços...
ResponderEliminarSó a título de curiosidade: o meu filho (agora sem qualquer trabalho), fez parte da Academia da RTP1 e foi o realizador de 4 reportagens sobre aldeias (diferentes pontos do país) desertificadas mas onde era palpável a partilha e o amor à sua terra. Teve bastante aceitação e audiência mas como o "cultural" é caro, não prosseguiram o projeto... Desculpa o arrazoado mas o teu texto tocou fundo.
Bjo, AC :)
Amei toda a história. Viajei em cada palavra no sentimento de Filismino. Parabéns, mais uma vez e obrigada por nos propor tão belos escritos. E, a propósito, como prezo muito pela sua opinião, atrevo-me a te convidar para ler uma história que contei no meu Blog. Espero que goste e que te toque de alguma maneira. bjs
ResponderEliminarhttp://mulhermaeprofessora.blogspot.com.br/
Antevia-se a suavidade do final ainda antes do ladrar dos cães.
ResponderEliminarDei um tempo às palavras, não sei bem porquê, mas elas, as palavras, mesmo as que não escrevo, estão em mim como se fossem minhas.
Gostei muito.
AC por um minuto gostaria de ouvir o silencio ... Bela forma de falar do ciclo da vida, a maneira que começa e como pode terminar.
ResponderEliminarBeijos caríssimo tenha uma linda semana.
o ultimo Moicano?...
ResponderEliminargosto deste seres que são testemunha do tempos.
abraço
Imagens do ser sozinho sem ser, quase pintura.
ResponderEliminarUm beijo
É de lágrimas acorrerem pelo meu rosto que li e reli, recuei no tempo e revi muitos dos momentos que um Sr. que era pastor na minha Aldeia vivia, não vivia mais em solidão porque o meu pai o ia buscar para nossa casa, mas ele entregou-se à solidão e a sua vida ao destino que ele escolheu.
ResponderEliminarAdorei o texto e a imagem.
Bem-haja meu amigo AC
beijinho e uma flor
Adoro essas casas de pedra, tão chegadas, do tempo em que não passavam carros, um encanto!
ResponderEliminarGostei mesmo muito do seu conto, com um arrepiozinho no fim...
Beijinhos, bom dia!
Quase que consegui transportar-me para o lado do Felismino. É exactamente disto que gosto quando leio, o não ser necessário grande esforço para conseguir estar lá. Lá, dentro do texto, e fazer também parte dele. Obrigada :)
ResponderEliminarQue solidão!!! O homem apendeu a saber estar só, demasiadamente só! Belo texto, boas ilustrações escritas, fizeste literatura com a vida humilde de Felismino! Senti-me remetida para os filmes de província.
ResponderEliminarBeijo saudoso :)
Olá, AC!
ResponderEliminarMagnífico texto. Duma realidade difícil de apreender para o comum do cidadão que sempre viveu em sociedade: que será poética para alguns, para outros vida de desterrado.
No fundo e para cada um, o importante é que estejamos de bem com nós mesmos - arte que o Sr Felismino aprendeu a dominar.
Um abraço e bom fim de semana.
Vitor
Felismino , o guardador do tempo , do silêncio e das estrelas .
ResponderEliminarDe quando em vez , necessitávamos de ser Felismino .
Um beijo , AC ,
Maria
Tantos Felisminos ainda persistem em viverem só, com só, na solidão...
ResponderEliminarBeijo, AC,
da Lúcia
Uma paz que se respira....se sente, se vive no olhar do Felismino...
ResponderEliminarGostei muito...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta
Uma realidade magnificamente bem escrita.
ResponderEliminarbls
De repente vi-me de regresso à minha infância quando ia passar férias a casa do meu avô, num lugar quase despovoado. Um texto excelente.
ResponderEliminarBeijo.
meu querido AC
ResponderEliminarQuantos Felisminos ainda vivem por aí nestas terras sem fim e são felizes à sua maneira. Nunca tiveram mais, por isso não sente falta do que não tiveram.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
AC,
ResponderEliminarA solidão, assim serena, assusta-me. Arrepiou-me a leitura deste texto. Comoveu-me a singeleza do devir para este homem que espera, em última análise, a morte.
Una furtiva lagrima foi o que me lembrou a sua prosa.
Beijinho.
Lição de vida a do Felismino!
ResponderEliminarMuito belo o teu texto.
Bjs
Uma solidão acompanhada! :)
ResponderEliminarBeijinhos Marianos, AC! :)
Suponho que conheça algumas aldeias assim. Pois a mim, faz-me falta o contrário. Faz-me falta uma casinha assim pequena, longe do bicho homem, onde possa gozar da minha própria companhia e dos meus amigos livros.
ResponderEliminarSem televisão ou sequer rede de telemóvel.
Beijinho
Ruthia d'O Berço do Mundo
A solidão só existe quando sentida e Felismino está afeito ao seu próprio mundo. Dá que pensar!
ResponderEliminarMaravilha de texto, AC. Muito belo mesmo.
ResponderEliminarBeijo!