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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como muito bem escreveu o nosso intemporal Camões.
Vem isto a propósito de os meus ouvidos, a torto e a direito, ouvirem (in)confidências, muitas vezes em surdina, de que o Natal já não é o que era, que agora a carteira é quem manda, mas sempre duma forma efémera. A acrescer a isto, e que já não era pouco, tenho recebido, nos últimos tempos, algumas solicitações para voltar a publicar o meu conto sobre o Natal tradicional, em que, acima de tudo, prevaleciam os rituais ligados à nossa parte espiritual, imbuídos dalguma inocência, pois isso (será?) faz parte do nosso património cultural.
Pois bem, e procurando dar o meu pequeno contributo para que certas memórias se perpetuem, aqui fica ele.
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Presépio, em telha mourisca, do meu ex-aluno Francisco Paulo
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, cinco anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, só visto naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cânticos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres entoavam, em louvor do Menino:
.........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da terra nasceu a vara........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Voltou para trás, a soluçar, vergado à enorme desilusão de ver a sua roupa nova toda enlameada. Nada o parecia reconfortar. Só a Maria José, com o jeitinho e a paciência que só as mães têm, o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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Boas festas, AC.
ResponderEliminarVotos de muita saúde e muita paz, que assim sendo, tudo o resto se faz.
Beijinhos com estima, carinho e amizade 🎄🌹🍀
Belíssimo conto. Os milagres acontecem.
ResponderEliminarAbraços, Um Feliz Natal e um próspero Ano Novo para ti e para os teus.
Furtado
Um conto que tive muito prazer em ler. Gostaria de ter esse encantamento na minha alma... : )
ResponderEliminarBoas Festas, AC
Feliz e abençoado Natal, AC!
ResponderEliminarA festa da nossa infância que marcou e fez nossa história.
O arroz doce deixa um odor de canela inigualável.
O filhós e a saudosa Consoada, lindezas da nossa noite feliz.
Menino Jesus, nossa Alegria.
Que Deus lhe dê um Natal muito abençoado junto aos seus amados!
Saúde, paz e amor sempre.
Lembre-se dos amigos virtuais junto à sua mesa de Festa.
Que não falte pão e Amor!
Abraços festivos e fraternos
💚❤️🌲
Foi tão bom reler e só não me recordo da imagem que é tão simples mas tão bela.
ResponderEliminarEste ano amigo terás o presente mais belo...o Miguel que será o Menino Jesus ou o tradicional "ai Jesus que o gaiato ainda se magoa". :))))
Um enorme abraço anual...quer dizer Natal:) e extensível aos teus.
Neste conto, está a verdadeira magia do Natal. Muito bem!! Abraço Agostinho e boas festas com muita saúde e paz.
ResponderEliminarÀ parte o fato de que couves nunca são apetecíveis, o conto é puro encanto. Belo, também, o presépio da foto.
ResponderEliminarQue o Natal deste ano seja bom, que o ano-novo seja melhor que este que já vamos terminar.
Que belíssimo conto! Tão boa a inocência! :)
ResponderEliminarSaibamos ser inocentes como as crianças!
Santo e Feliz Natal, extensivo aos que ama!
Beijinhos.
Que conto maravilhoso, nele está realmente contido o verdadeiro espírito do Natal.
ResponderEliminarRevi um pouco a minha infância, era uma magia diferente.
Tive tanta pena do coitadinho do João, tão contente e feliz estava com a roupinha nova e logo teve o acidente. O importante é que ele acabou por ficar feliz quando olhou para o menino Jesus.
Obrigado por este momento belo momento de leitura.
Feliz Natal 🎄 e um excelente Ano Novo 🍾 🎊 pleno de tudo de bom.
Beijinhos
Passando, elogiando a publicação num conto deslumbrante, e deixando votos de um FELIZ e SANTO NATAL, extensivo à família e amigos/as.
ResponderEliminar.
Cumprimentos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Amei a publicação! 🙏
ResponderEliminar-
Votos de:- Paz. União. Amor. Esperança. Harmonia. Humildade. Dignidade Solidariedade. Bondade. Paciência e Gratidão. Abraço com carinho. Feliz Natal.
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🌲Que não nos falte a alegria de viver. Feliz Natal🌲
Com encantamento li eu este seu conto de Natal. Também recordo os cheiros espalhados pela casa, a ansiedade de pôr o sapatinho e até tentar não adormecer para ver se ouvia o Menino Jesus o que nunca me aconteceu porque o sono era mais forte.
ResponderEliminarApesar de ter sujado a roupa nova o menino encontrou a magia do Natal. É bom quando isso acontece...
Desejo um Natal com muito amor e que o ano de 2022 lhe traga tudo o que mais quer.
Um beijo.
AC
ResponderEliminarUm conto delicioso de ler.
Hoje o Natal já perdeu o seu encanto, pelo menos para mim.
Retribuo e agradeço muito sensibilizada os votos de Feliz Natal e Ano Novo que deixou no meu Maresias.
Muito obrigada!
Beijinhos
:)
O seu conto é puro encanto.
ResponderEliminarFeliz Natal, querido amigo. Que o Menino Deus cubra de bênçãos infinitas a você e família.
Grande abraço.
Continuação de Boas Festas, AC. E que continue a contar-nos estórias, contos de Natal ou de todos os dias. :)
ResponderEliminarUm conto daqueles que lems e queremos ler de novo.
ResponderEliminarComo tudo que escreves, AC é um deleite!
Vindo te abraçar e desejar um Ano cheio de Paz , de Harmonia, de Felicidade. Todas as outras coisas virão , no conjunto.
Grande , grande abraço.
Um conto adorável, AC!!! Que tenha vivido esta quadra, ao sabor da sua máxima plenitude e espírito de Natal, na companhia dos seus!
ResponderEliminarAqui por força das circunstâncias, pelo segundo ano, teve de ser diferente, de tudo a que nos habituámos. Voltei a não me arrepender da opção, pois alguns amigos nossos, insistiram em grandes aglomerações familiares... e apesar de testagem massiva... o Ano Novo, já foi passado entre quarentenas, e sobressaltos de saúde vários... eu... voltei a cumprir o meu objectivo: fazer chegar a minha mãe até ao novo ano, sem problemas... e enquanto for assim... não vamos mal... embora se pague um elevado preço em falta de convivência, e falta de rituais, programas e saídas próprios da quadra, mas dadas circunstâncias... a prudência tem de falar mais alto... quando há quadros de saúde problemáticos... enfim! É o novo mundo que temos, em que a quadra de Natal, se transformou num acontecimento de risco, para alguns, se for vivida no clima de proximidade de antigamente...
Um beijinho! Esperemos que o próximo Natal se revele bem mais leve em ansiedades e preocupações... e assim se torne bem mais próximo dos da nossa infância...
Tudo de bom!
Ana