quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

CONTO DE NATAL - A LUZ DO LABIRINTO

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Margarida Cepêda, A luz do labirinto
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Vivia os dias ao sabor da corrente, como se tudo estivesse no seu lugar, apesar de não lhe passarem despercebidos os escuros becos. Mas sentia, no mais fundo de si, que lhe faltava algo. Pensava que sabia qual a margem segura do Grande Rio, e era essa que procurava frequentar, mas tudo lhe parecia demasiado elaborado, demasiado protegido. E, qual pintor de sensações, pressentia que havia algo que faltava - a forma?, a cor?, a mensagem? - para que a tela fizesse sentido.
Apesar dos medos, um dia decidiu atravessar para a outra margem. Comeu novos frutos, aprendeu novas canções, novas formas de linguajar, descortinou outras formas de rezar. Contudo, bem vistas as coisas, os risos e os choros eram os mesmos. Continuava a ver especuladores, vendedores de banha da cobra, formiguinhas incansáveis e ordeiras na sua fila, e muitos autómatos pendurados, quer seja numa garrafa, numa fila de cocaína ou na ânsia de acumular poder e dinheiro. Faltavam, isso sim, pessoas preocupadas com as bocas por alimentar, com um mundo por equilibrar. A visão das coisas alterou-se, é certo, num vislumbre mais global, e sentiu que, a haver certezas, elas são muito relativas. Mas, mesmo assim, e talvez por isso, a sensação incómoda não o abandonava. Continuava a faltar uma qualquer subtileza, indefinível, que lhe travava a pretensão duma visão harmoniosa, em equilíbrio com o que o rodeava. Que fazer? 
Apesar do desalento, continuou a trilhar o caminho das indefinições, à espreita, em cada curva, que algo se revelasse. Mas o pó acumulava-se, e nada. 
Um dia, perante tantos caminhares e divagares, encontros e desencontros, alguém lhe falou, quase em surdina, duma pequena ilha situada no meio do Grande Rio. E, sem hesitações, norteou para aí os seus passos.
Quando chegou, de ar cansado, abordou o cais. Sentou-se nas carcomidas tábuas, comeu duas laranjas e bebeu um gole de água. Depois, já refeito, abeirou-se do barqueiro. Ajustou o preço da travessia, conferiu o conteúdo da mochila e, de espírito expectante, deixou-se transportar contra a corrente.
Na ilha foi recebido por dois anciãos, de manta nos ombros, aparentemente avessos a sensações. Saudou-os, foi saudado. Só então, depois de os fixar olhos nos olhos, reparou que esboçavam, muito ao de leve, um sereno e permanente traço sorridente, como se tivessem encontrado o quase indecifrável equilíbrio da vida.
Levaram-no por trilhos imperceptíveis ao olhar comum. Quando já começava a desacreditar das boas intenções de quem o conduzia, deparou com um velho, de cálice na mão, sentado à entrada duma gruta. Vestia uma túnica que não escondia a pele engelhada, tinha cabelos fracos e baços, mas escorria por ele um porte digno, de forma natural, como se fizesse parte da sua respiração. Abeirou-se, curioso, mas dele apenas brotaram parcas palavras:
- Bem-vindo. Sejas quem fores, nunca te esqueças do pó do caminho que aqui te trouxe.
Depois, sempre solene, desenhou um leve sinal para o interior da gruta, qual sinal para continuar.
Assim fez. Após contornar algumas bifurcações, como que a quererem despistar qualquer intruso, deparou-se com uma ampla câmara, de tecto alto, com uma luz difusa, oriunda de subtis orifícios provenientes da superfície, a incidir sobre um quadro que, ao primeiro impacto, tinha tanto de natural e primitivo como de hipnótico: uma mãe, com o pai em permanente vigia e protecção, dava de mamar a uma criança. Ao lado, brotando das rochas, soltava-se a água cristalina, qual fio irrigador de qualquer crença. Do pó vieste, ao pó hás-de voltar, isso sabia ele. Mas, até lá, e sentia-o ali, muito havia que fertilizar, com o essencial a brotar daquela simples tela: a esperança em melhores dias.
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13 comentários:

  1. Até chegar ao pó há muita água cristalina a correr.
    Um abraço

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  2. Um conto fantástico e de repente vi-me nas idas ao quimbo do avó do meu amigo Zé com o carro carregado de ofertas e para ou porque:
    "Faltavam, isso sim, pessoas preocupadas com as bocas por alimentar, com um mundo por equilibrar.".
    Gostei muito e até me emocionei.
    Beijos e um bom dia

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  3. Uau!... Lindo, é tudo o que posso dizer. Estou lendo mais uma vez.

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  4. Um belo conto, no qual todos nos revemos... ansiamos por dias melhores... enquanto vamos prosseguindo no nosso sobressaltado quotidiano... esperemos que uma melhor fase, de águas mais calmas, venha ao nosso encontro... entretanto... tudo é caminho e aprendizagem!...
    Um beijinho! Continuação de uma feliz semana!
    Ana

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  5. A esperança num conto. Provavelmente, o único sítio onde ela tem morada. Nós, continuamos, teimosamente, atravessando margens, à procura de algo que, sentimos, nos falta, e como não encontramos, roubamos a esperança ao conto, para podermos continuara caminhar.

    Boa noite, sô AC

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  6. Não se pode viver por muito tempo ao sabor da corrente. Há, dentro de cada um, essa esperança de dias melhores.
    Belo texto.

    Um abraço.

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  7. Quando tudo parecia ser igual em todo o lado, para o bem e para o mal chegou à ilha de água cristalina onde saciada a sede que a poeira dos caminhos provocou, encontrou a esperança na simbologia de um quadro: uma mãe, com o pai em permanente vigia e protecção, dava de mamar a uma criança". Que conto tão belo! Parabéns!
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  8. Como sempre...um belo conto, Agostinho!

    Um abraço amigo.

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  9. Às vezes, passar para a outra margem é a melhor opção.
    Adorei estas narrativas com um significado muito profundo e imensamente belo.
    Um beijinho 😘

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  10. Profunda reflexão sobre a vida no seu infinito contexto!
    Um abraço

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  11. AC

    Como sempre um conto com passagens muito belas, uma escrita cuidada e rica.
    Muita sensibilidade e muita criatividade também.
    A foto de Margarida completa o texto em prosa poética.
    Gostei muito de ler.
    Beijinhos
    :)

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  12. Passando a deixar um beijinho, bem como os meus votos de Festas Felizes, com saúde, para si e todos os seus, AC! E que 2022 se mostre incomparavelmente melhor!
    Tudo de bom! Feliz Natal!
    Ana

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