domingo, 8 de janeiro de 2023

O AMOLADOR

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Num tempo em que o normal era medido, por precaução, em ressonâncias de múltiplos espelhos, fossem eles o que fossem, calhou um dia em que, nas calibragens de espera do faz de conta que é a vida, as têmporas dum santo parecessem azuis. E as pessoas, desidratadas de interrogações, socorrem-se do mais básico que a sobrevivência lhes proporciona: ai Jesus, que lá vem isto, ai meu Deus, que lá vem aquilo.
Estava-se nisto, num compasso de nem enferrujar nem desenferrujar, quando, um dia, na aldeia avessa a mudanças, apareceu por ali um velho amolador sorridente, muito sorridente. E, para lá do entoar da tradicional gaita, desembrulhava ditos de fazer sorrir, ancorados em vislumbres de visões para lá do horizonte.
Os velhos olhavam, desconfiados, mas as crianças, eternamente viradas para o mundo, seguiam-no com avidez, não fossem perder algo para lá do ramerrame. E o amolador, sentindo que tinha público, embora não pagante, começava a contar histórias de antanho, todas com um denominador comum: apesar das intempéries, coisas de deuses caprichosos, as personagens acreditavam que tudo poderia ser vencido pelo engenho e pela arte, pela vontade e perseverança. Festa, a haver, só no final dum bom desiderato.
Tal como surgiu, e após um ou outro serviço com uma moeda a tilintar, assim o velho sumiu, com um último trinado a refugiar-se nas pedras das casas. E, vá lá saber-se como, sabia, qual dever cumprido, que as crianças da aldeia jamais o esqueceriam.
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10 comentários:

  1. Texto muito interessante. Video que muito gostei de ouvir
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    Bom domingo … Feliz ano de 2023.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos

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  2. Muito0 lindo e por aqui, ainda aos sábados, passa um amolador e seu tradicional apitinho avisando sua chegada... Adoro ouvir! abração,chica

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  3. Um texto belíssimo AC. Raramente esquecemos aquilo que vimos e ouvimos em criança.
    Abraço e saúde

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  4. Figura da minha meninice, trazia um som incomparavél que, só aparecia nos dias chuvosos do Inverno, talvez porque era naquela hora que os guarda chuvas precisavam de uma vareta nova.
    Feliz Ano, sô AC

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  5. Nada como os sons antigos que ficaram em nossa memória para ativar a nossa melhor memória....
    Um abraço

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  6. Tinha sempre uma flauta para chamar as pessoas.
    E os mais velhos assustavam os garotos e diziam que se se portassem mal ele os capava.
    Boa semana

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  7. Tenho saudades de ouvir o amolador. As crianças nunca mais o esqueceram nem irão esquecer. Quem me dera ter ouvido as histórias que contou, que só posso imaginar. Um texto que me levou a outros tempos. Magnífico!
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  8. Um texto que me fez regressar à infância. Muito belo.
    Uma boa semana.

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  9. Um texto maravilhoso como sempre que me levou a recordar o "amolador" da minha infância que ficava junto dele a ver o seu trabalho. Diziam os mais velhos que ao ouvirem viria chuva e por vezes acontecia mesmo. Aqui passava um muito, mas muito engraçado e afável mas desapareceu e nunca mais o vi.
    Gostei muito e obrigado por este belo texto.
    Beijos e um bom dia

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  10. Felizmente moro numa vila, onde o amolador ainda vai passando com a sua flauta e bicicleta... num chamamento, que desperta memórias... adorei a escolha musical, igualmente! Que saudades deste grupo, com uma sonoridade tão especial e entusiasmante!
    Um grande abraço! Bom ano, com saúde e paz, para si e todos os seus, AC!
    Ana

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