terça-feira, 21 de março de 2023

ONTEM, HOJE, SEMPRE...

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Imagem retirada da net
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Eles, os observadores, não navegavam, preferiam a margem segura, mas admiravam quem ousasse profanar as águas, fronteira limite dum mundo, assaz aventureiro, que nada augurava de bom para o recanto onde cada um, aparentemente, sabia o que tinha a fazer.
Outros foram, com a alma adocicada, contrariando os oráculos, mas poucos regressavam. E, entre traumas e venturas dos sobreviventes, logo se alongaram os cais, não fosse o diabo tecê-las, apesar da negação das ancestrais professias: cada um no seu lugar, sem necessidade de abespinhar o urso.
Mais partiram, procurando a aurora noutras latitudes, poucos continuaram a chegar. Os jovens, fervilhando, não viam a hora de sentir o porvir, tal o seu ensejo; os homens feitos, apesar do aconchego do conceito de honra, embebido nas origens, começavam a meditar, nos intervalos da suposta epopeia, nos filhos que deixavam, nos campos que ficavam por lavrar; as noivas, arrasadas por uma realidade sem paralelo, para além dos ais, reinventavam um tempo sem tempo, em que apenas elas existiam, ácidas de tanto esperar, sem filhos por nascer; as velhas, envoltas em pesados trajes, nada diziam, apenas lamentavam, pois sentiam o drama. E, às escondidas, limitavam-se a carpir, não fosse a vizinha notar.
Quando um barco chegou, carregado de riquezas doutros mundos, toda a aldeia festejou. E o efeito multiplicou-se por outras, por muitas outras, quando novas velas se fizeram anunciar num porto, em dois, em muitos... E, por um tempo, perante a limitação do olhar humano, a efemeridade insinuou-se como deusa suprema, não fosse qualquer precavido, por mais sensato, perder o próximo barco.
Hoje, passados muitos anos, se alguém festeja a chegada de um barco, é apenas para descompressão dos solitários dias, mas sempre com a esperança, eterna filha em dias melhores, sempre no horizonte. Os hemisférios deslocaram-se, artificialmente, para outras paragens, a conversão da vida em possível festa tornou-se, irremediavelmente, uma questão por reinventar. Segundo alguns, ad aeternum, apesar de continuarem, por hábito, a fazer o sinal da cruz, à espera dum qualquer sinal, seja ele qual for.
Por aqui, num espaço aparentemente imune às questiúnculas dum amanhecer cavernículo, teima-se em deixar espaço às diferentes espécies de vida, cada qual com a sua importância: as ervas, após alguma chuva - não a suficiente - continuam a crescer, florindo; as árvores, num ritmo primaveril comandado pelos raios solares, desabrocham a cada dia que passa, fazendo sorrir quem as sente e observa; as andorinhas fazem-se anunciar, reivindicando, quase que por magia, os ninhos ocupados de antanho; os pardais, sempre omnipresentes, continuam a fazer sentir a sua arruada, como se fossem donos e senhores do espaço; os pintassilgos, muito mais discretos e imunes à presença humana, teimam em debicar sementes e insectos, sempre num voo elegante; os melros, definição perfeita do que é ser esquivo e ladino, poisam aqui, debicam ali, procurando nunca denunciar onde habitam; as pegas-rabilongas, as malfeitoras do lugar, pois devoram qualquer couve jovem, denotam confiança e desfaçatez, mas afastam-se ao mínimo ruído; mais acima, as cegonhas, com ninho nas proximidades, passam ao fim da tarde, num voo ergonómico, com as patas a projectar-se para trás, em consonância com a cabeça, que se projecta para a frente, desafiando, ou evitando, qualquer obstáculo que se lhes depare; as aves de rapina, mais altaneiras, dominam a estratégia do olhar, procurando, socorrendo-se da emanação das correntes de ar, definir qual a melhor forma de apanhar este rato, ou aquele coelho, deitar as garras àquela serpente...
Por mais que, no exterior, os quadros se pintalguem de cores funestas, por aqui o vento continua a soprar, instalam-se os primaveris raios solares, começam a lavrar-se as terras, com as abelhas e as borboletas, qual benfazejo sinal, a dar sinal da sua presença. E eu, apesar dos anunciadores da desgraça, continuo a acreditar.
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7 comentários:

  1. Sempre me intrigou a disposição dos que navegaram a todo risco, cujo lucro, quando havia, era para outros. Mas ficar também não seria um risco?
    Por aqui, chove sem parar, ainda que a meteorologia diga que o outono será seco. Com isso, as aves que migram vão desaparecendo, em busca do Norte. Parece que a natureza não dá muita importância às inquietações humanas, acidentais ou provocadas, e segue seu rumo (quase) imutável.
    Lindo texto; gostei muito da imagem, semelhante àquilo que por aqui chamam "azulejos portugueses" e podem ser vistos nos casarões que ainda restam em algumas localidades mais antigas.

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  2. O ser humano é incansável em sua busca pelo grandioso e pelo poder e pela riqueza e pela fama....embora lhe custe a felicidade que já possui . Um abraço

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  3. Profetas de desgraça, carpideiras, são males que nunca nos abandonam.
    Vozes de burro.
    Abraço

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  4. Já não fazemos as viagens de outrora. O tempo mudou e os mundos foram descobertos e ocupados. Ao ler o seu texto, senti uma calma enorme porque a Terra-Mãe com todos os que a habitam segue o rumo da Natureza que nos deslumbra. É certo que há sempre que profetize o pior. Mas eu acredito num mundo melhor, sem conflitos, sem ódios, sem bombas. Quem me dera poder ainda assistir num mundo assim. Obrigada por este momento de leitura fascinante.
    Tudo de bom.
    Um beijo.

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  5. Quero crer que, mesmo os anunciadores da desgraça, acreditem e esperem. Ou terão morrido sem dar conta.

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  6. Nada supera a paz que a natureza nos transmite.
    Gostei de ler o seu texto e gostei da imagem.

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