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Ira Moskowitz, David e Golias
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David hesitava, na antecâmara da sala, dando livre curso aos medos. Por fim, arremetendo, cegamente, contra as amarras que lhe toldavam a razão, abriu a porta e entrou.
O burburinho da sala, plena de sorrisos de etiqueta, atingiu-o como um raio. Ainda pensou em dar meia volta, mas algo o impelia a ficar, a olhar em frente. Avançou, combatendo o medo, esforçando-se por parecer imune às circunstâncias. Ignorou dois ou três cães rosnadores, contornou quatro ou cinco víboras, sorriu perante o papagaio de serviço, igual a tantos outros.
Quando chegou junto da mesa principal, colocada, estrategicamente, para ser vista por todos, o vice-rei fez-lhe sinal para se abeirar. Saudou-o, respeitosamente, e aguardou que o anfitrião se manifestasse.
- Sabes, David, o mundo está a transfigurar-se, prestes a viver novos paradigmas.
David ouvia, atento, esquecendo tudo o que o constrangia. Sentia que as palavras, prestes a brotar, continham algo de superlativo, fosse qual fosse o ângulo de análise. O vice-rei continuou:
- O mundo, tal como ele se nos apresenta, é como uma barca à deriva, onde todos se querem abrigar, mas poucos têm lugar. Levando esta ideia à letra, o rei, recorrendo às mais modernas tecnologias, mandou construir uma nave, à qual apenas terá acesso o que de melhor fervilha na nossa espécie em áreas essenciais: físicos, químicos, filósofos, médicos, antropólogos, agrónomos, biólogos, engenheiros, professores...
O vice-rei fez uma pequena pausa, deixando que as palavras produzissem o seu efeito. Depois, fazendo sinal a David para se aproximar mais, segredou-lhe, quase em sussurro:
- Para além dos políticos certos, é claro - condescendeu o anfitrião, sorrindo. E continuou:
- O rei, ciente da importância desta empreitada, encarregou-me de seleccionar algumas pessoas que complementassem o saber de cada especialista. Quando alguém lhe levantou a questão das fissuras provocadas pela insatisfação da maré de candidatos, o teu nome, David, surgiu com toda a naturalidade. A nave, para que saibas, chama-se Golias.
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Procurar o que de melhor há na sociedade... apurar a raça humana... efectivamente... alguém pensou nisso na Alemanha, no final de década de trinta do século passado... os que não tinham lugar no mundo... logo à partida... entravam por uma porta... e saiam por uma chaminé...
ResponderEliminarÉ precisamente a parte... no que toca à escolha dos políticos certos... que me assusta... pois às vezes... não há discernimento para o fazer... como o comprovam também as mais recentes eleições nos Estates...
Acho qualquer filtragem perfeitamente assustadora... até porque um bom profissional... em qualquer área... não é garante de ser uma boa pessoa... por exemplo... muito raros, serão os bons políticos, que realmente se revelam boas pessoas...
Nave assim...teria demasiadas fissuras... não admira que se chamasse Golias... missão gorada logo à partida...
Um texto belo... e inquietante, que nos faz reflectir... sobre a abrangência de uma selecção... e se será ético ou não fazê-lo... e quais os critérios... se alguma vez se chegasse a tal...
É mesmo um texto que nos oferece um mundo na sua totalidade... sobre o qual reflectir...
Parabéns, pelo extraordinário texto, AC!
Beijinho! Bom fim de semana!
Ana
Gostei muito do seu comentário, Ana.
EliminarUm beijinho :)
Também gostei do comentário da Ana, subscrevo-o-
EliminarBeijinhos para ambos.
~~~~~~~~~~~~~
Grata eu, a ambos!... :-)
EliminarBeijinhos
Ana
Uma bela metáfora em que a selecção de uma nova e aprimorada categoria de elementos, essenciais, para formar uma sociedade melhor, se impunha, qual Arca de Noé, perante a iminência de um dilúvio destruidor...
ResponderEliminarPois é, amigo AC, quando comecei a ler pensei que os políticos ficassem de fora da nave, mas se o manda-chuva escolheu David, o melhor será ele ir apetrechado com as pedras e a funda...
Tens sempre uma forma muito especial de nos colocares graves constatações sociais, sob uma bem estruturada narrativa.
Um belo texto com muito pano para mangas. Assim, possamos ler, nas entrelinhas, a magnífica mensagem que pretendeste passar.
O mundo está a ficar um lugar difícil para se viver, com dignidade e sentido de justiça. Um novo David, precisa-se...
Um Beijinho, A.C. :)
Desejo-te um Ano 2017 replecto de concretizações, muita saúde e Amor.
Tens uma grande capacidade de análise, Janita, essa é que é essa. :)
EliminarSabes, tenho muitas reservas acerca de qualquer David. São os outros, a grande multidão, que têm que se fazer ouvir.
Gosto sempre de te ver por cá, tu sabes disso.
Um beijinho :)
Inquietante como inquietante é a actual conjuntura mundial onde cada vez mais surgem as "fissuras, víboras, cães rosnadores e resmas de papagaios" em detrimento de quem procura o bem!
ResponderEliminarGostei do texto mas não da pintura. Desculpa!
Beijos e um bom domingo
Porque pedes desculpa? Sempre gostei da tua veia espontânea, ela faz de ti, juntamente com o teu conceito de justiça, bem mesclada de afectos, uma pessoa genuína como poucas.
EliminarUm beijinho :)
Pois que já entes tentaram apurar a raça e já antes tentaram aniquilar todos os que a ela não pertenciam, seguramente a escolha não foi a melhor e o plano saiu gorado. Quem julga também não sabe julgar....
ResponderEliminarBoa noite AC
Sobrevivência oblige, GM, e eles são capazes de tudo, podes crer. Será que, na hora certa, teremos voz?
EliminarUm beijinho :)
Que o David não caia no esquecimento!
ResponderEliminarBeijinho meu amigo
Infelizmente, minha amiga, figuras como David são mera figura de retórica. Se não formos nós a fazer sentir a nossa voz, quem o fará?
EliminarUm beijinho :)
Cada vez que leio algo sobre escolha dos melhores, sobre seleção, fico sempre aterrorizada. Lembro-me sempre de campos de extermínio, e câmaras de gás.
ResponderEliminarUm abraço e uma boa semana
Neste caso, Elvira, o extermínio adivinha-se a céu aberto, fora das zonas de conforto. Já reparou que a multidão de excluídos aumenta, a toda a hora, de forma assustadora?
EliminarUm abraço
Imaginação à solta.
ResponderEliminarExcelente!
Aquele abraço, boa semana
Oxalá fosse apenas imaginação, Pedro, os sinais são mais que evidentes.
EliminarAbraço
O texto é maravilhoso e a escolha da imagem...um primor!
ResponderEliminarBeijo
Obrigado, Ana.
EliminarUm beijinho :)
Poeta , excelente o metafórico texto .
ResponderEliminarBeijos e boa semana .
Marisa, é sempre um prazer vê-la por aqui. Ah, as metáforas...! :)
EliminarUm beijinho
Fantástica metáfora! Espero que nunca mais se repita no mundo essa coisa de querer escolher "os melhores"... Também a armadilha que é a barca onde iria entrar David se chamar Golias... Leva-me a pensar como é inquietante a hipótese de haver "salvadores do mundo"... Para reflexão este texto...
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijos.
Gosto dessa sua forma de ver as coisas, Graça, com perspicácia, intuição e saber feito.
EliminarUm beijinho :)
Olá AC.
ResponderEliminarUma metáfora que talvez nos diga que não devemos temer os confrontos naturais e inevitáveis da vida, pois o pior dos combates é aquele que travamos muitas vezes connosco próprios e dos quais resultam noites em branco e carência de paz de espírito. Um beijo.
Tudo passa por aí, Júlia, se efectivamente queremos fazer algo de diferente das nossas vidas, para lá das amarras da formatação.
EliminarUm beijinho :)
O mundo tem-se transformado, os seres humanos e não só também. Tudo isso é natural, faz parte da evolução da espécie e devemos aceitar a mudanca com naturalidade; nem sempre nós, os mais velhos a aceitamos e a prova é o nosso constante " no nosso tempo era assim..no nosso tempo eram todos mais respeitadores,...no nosso tempo havia uma convivencia mais saudavel..no nosso tempo...e no nosso tempo... " No nosso tempo havia tudo o que há hoje, coisas boas, acontecimentos terriveis, violências enormes em todos os aspectos; o que não havia era a liberdade de informação, a facilidade das novas tecnologias e as desgraças ficavam " entre quatro paredes " Hoje tudo se sabe, e o nome é dado a todas as coisas sem qualquer tipo de censura. É claro que há exageros no uso de tanta informação, o convivivio social foi substituido pelo virtual, mas também houve mudanças que vieram beneficiar a vida de toda a gente; não havia tempos perfeitos antigamente assim como há muita coisa errada actualmente. O ideal nunca existiu e jamais o veremos, A barca onde todos entramos a cada amanhecer é fragil, pois o mar nem sempre é calmo e as ondas raivosas facilmente a fazem afundar; nao há salvadores do mundo a não ser cada um de nós com as armas que tivermos ao dispor na hora da luta; houve um Ser que nasceu com a intenção de nos salvar, mas...crucificaram-no e não tenhamos ilusões...estamos à deriva num mundo que roda a seu ritmo e que não quer saber se rodamos junto com ele. Ele nao selecciona ninguém; todos estão nele com os mesmos direitos, mas infelizmente há sempre aqueles que se julgam mais fortes, mais iluminados e, não cabendo todos, simplesmente empurram aqueles, por eles considerados mais fracos que, impotentes lá vão para o fundo do mar; não há lugar nessa barca para os mais frágeis. Sempre foi assim e por mais evoluido que esteja esse Homo Sapiens, assim será sempre. Amigo, façamos o que pudermos para que, junto a nós na mesma barca caibam aqueles que connosco mais de perto convivem, Também não podemos salvar o mundo, mas podemos sempre contribuir com uma pequena tábua para a construção de uma barca maior, um pouquinho maior, pelo menos. Obrigada por mais um texto excelente no qual temos a obrigação de reflectir. Um beijinho
ResponderEliminarEmilia
Um quadro bem delineado! Nunca dás as cartas todas, deixas espaço para reflexão, como se advertisses para armadilhas debaixo dos pés.
ResponderEliminarExcelente!
Beijo.
AC ,
ResponderEliminarlogo que o meu olho deixar , cá estarei .
Um beijo ,
Maria
Muito bom este teu ensaio! :)
ResponderEliminarComplexo, dos mitos colectivos, à preverão do poder.
E revelando a fragilidade de todos (iguais na sua humanidade) quando confrontados com medos pessoais e o pensamento mágico/superstição.
E no entanto tão simples.
Muito bom!
Penso que somos todos David e poderemos ser todos gigantes, mas essa ascenção a gigantes deveria ser em valores, essa é que deveria ser a verdadeira seleção.
ResponderEliminarUm texto profundo que gostei de saborear.
Parabéns!
Beijinho
Um texto excepcional!
ResponderEliminarQuem sabe um dia, o homem constrói uma máquina capaz de salvar o mundo...
A inteligência artificial já é o começo.
Após um ano de paragem , voltei...não sei se anda se lembra de mim...
Abraço
Um conto com a tua rica singularidade de semear com
ResponderEliminaras palavras, nos seus veículos e símbolos a força maior
que existe no processo da transformação; que é a reflexão
questionadora dos caminhos, parece que todos os caminhos
existem aqueles que se apropriam como donos (egos) que
guiam os seus "seguidores" e todos cabem sempre numa "nave".
Os maiores caminhos são na trilha silenciosa do não saber!...
Admirável sempre teus textos, Poeta.
Boa semana e caminhada sábia, AC!
Beijo.
Esta é a versão contemporânea da Arca de Noé, não é, AC? Só espero é que, a existirem políticos que só existam do mesmo sexo, uma pessoa não pode arriscar a que se reproduzam. Credo! :))
ResponderEliminarBeijinho, AC, tenha uma boa noite.
Mais um naco de boa prosa em jeito de quebra nucas. Com funda e pedra David ganhou ao Golias. Sapato apertado faz calos. Não vejo David meter-se em apertos.
ResponderEliminarPés libertos para fazer o caminho é que se quer. A mania do poder de se pôr a triar notáveis para um lado, indiferenciados para o outro, pode(rá) estoirar a panela ou o barco (como se queira).
Desconfio que os Davides não embarcarão. Quando muito sacam da funda e afundam a real barca.
Abraço, amigo AC.
Muitas vezes fico imersa nas tuas narrativas, pois que há sempre esse espaço que deixas para o próprio leitor formar seu sentido é isso é extraordinário. Naveguei em política, em auto descobrimentos e em interrogações. :) beijo
ResponderEliminarDavid e Golias já não estariam adequados adequados á sociedade contemporânea onde se instalou o jogo do vale tudo e nem tudo é o que parece ser.
ResponderEliminarum abraço
Na barca irá sempre um David e um Golias .Cada um de nós transporta - los -á .
ResponderEliminarUm beijo , AC , e bom fim de semana ,
Maria
Um belo conto, com personagens antigas mas com um enredo bem actual.
ResponderEliminarGostei imenso.
Bom fim de semana, caro amigo AC.
Abraço.
O mundo não está mesmo assim, AC? Dividido entre os quem sim e os quem nunca? Ah... não se pode esquecer também os Davids - com o quais talvez nos conformamos - que servem para tapar as "fissuras" da insatisfação entre os candidatos... Ah, pobre de mim (de nós?) num mundo em que é preciso conviver com "sorrisos de etiqueta" que disfarçam verdades inconfessáveis!
ResponderEliminarAbraço!
Excelente conto.
ResponderEliminarUm abraço
Maria
haverá sempre um David e um Golias...acho eu
ResponderEliminaractual a prosa, com nomes de passado
belo texto com alguns ensinamentos
beijos
:)
Como já te acompanho há um tempo considerável, já não me espanto com a tua capacidade de, em pouco, abrangeres imensos aspetos da nossa (triste) condição de seres mais propensos à intolerância do que à tolerância. Nada é escrito por acaso. Infelizmente, há e sempre haverá iluminados que se acham salvadores (ou conservadores) de espécies puras...
ResponderEliminarBj, AC
AC que texto forte! E atual!
ResponderEliminarMuitas reflexões, especialmente, a de que o tempo passou, mas nada mudou.
Bravo amigo!