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A memória remonta a 1890, passada de geração em geração nas gentes do Souto da Casa. Dizem as pessoas que, nessa época, de parcas posses, o sítio do Carvalhal, situado numa elevada quota da Gardunha, era repartido por três interesses: a família Garrett, uma das mais poderosas do distrito, explorava as pastagens; à Irmandade do Santíssimo cabiam as castanhas; ao povo do Souto da Casa, por sua vez, cabia o amanho da terra, que não ia além do cultivo do centeio, pois a altitude e a qualidade dos terrenos para mais não davam. Mitigavam a fome, mas pouco.
Diz o ditado que quem mais tem, mais quer. E a toda poderosa família Garrett, fermentando esta evidência, deu ordens ao seu feitor para que ocupasse todos os terrenos do Carvalhal, deixando de fora todo um povo que, na míngua, mendigava um naco de pão em zonas altas da serra, só acessíveis a muito caminhar.
O povo não se conteve. Os sinos tocaram a rebate e, após breve concílio, toda a gente se dirigiu para o Carvalhal. António Aquém, feitor dos Garrett, foi apanhado na intempérie e, como represália, foi obrigado a transportar às costas, até à povoação, um pesado e grosso tronco de castanheiro.
Com maior ou menor pormenor - quem conta um conto acrescenta-lhe um conto - o episódio é mesmo real. E desde essa data, há 128 anos, o povo do Souto da Casa, para festejar o acontecimento, todos os anos se mobiliza para o sítio do Carvalhal, no primeiro dia a seguir ao Carnaval, com recheada merenda a tiracolo.
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Nos últimos anos, qual irmandade em constante renovação, muitas são as pessoas exteriores à terra que se associam aos festejos, identificando-se com o sentir daquele povo, que se auto-designa da "rama do castanheiro", ou seja, de antes quebrar que torcer.
Este ano, um grupo de pessoas de valores sólidos, que gosta de conviver e de partilhar, achou por bem convidar-me. E eu, eterno defensor da união das ilhas que tendem a habitar em nós, não podia dizer que não. O tempo estava pouco convidativo, muito encoberto - lá em cima o nevoeiro foi verdadeiro anfitrião, qual D. Sebastião a testar a crença das pessoas - mas lá fui eu, muito bem acompanhado, para me unir a festejos que, na sua essência, antecedem, em muito, o 25 de Abril.
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O espírito, lá em cima, é partilhar com quem apareça. No bornal, devidamente apetrechados, os meus anfitriões levavam ementa de estalo para dar vida na brasa, com a ajuda duma simples pitada de sal: pedacinhos dum borrego escolhido criteriosamente e... tordos, apetitosos e deliciosos tordos. Mas havia mais: chouriças de várias proveniências, com incidência na zona raiana, um coelho de estalo, com um molho, preparado na hora, a condizer, e um feijão previamente cozido num forno a lenha. Para acompanhar, pouco de modesto: três tipos de vinho de diferentes proveniências.
Ainda havia o arroz doce, o café de brasa - coloca-se uma brasa dentro do café, nem sabem o bom que fica! - um digestivo. E as pessoas a passar, a comunicar, a provar enquanto reforçavam os laços...
A seguir foi o meu grupo que cirandou pelas mesas adjacentes. E, por entre uma graçola e um sorriso, quase sempre de copo na mão, a tradição da Tomada do Carvalhal lá se ia cimentando, com os mais novos a fazer a sua própria festa.
De permeio, por entre o toque dos bombos, a pergunta/celebração:
- De quem é o Carvalhal?
A resposta, em uníssono, é sempre a mesma:
- É nosso!!!
No próximo ano, faça sol ou caia chuva, lá estarei para renovar os laços.
.No próximo ano, faça sol ou caia chuva, lá estarei para renovar os laços.
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Gostei desta Lenda!
ResponderEliminarPara contrariar essa usura dos Garret, faz o povo muito bem em se apropriar do Carvalhal, uma vez por ano, e festejar, colectivamente, com boa e farta comida e melhor bebida.
Um abraço AC. Bom fim de semana.
Não é lenda, Janita, foi um acontecimento real.
EliminarDe facto, AC, até referes o ano a que a história remonta, mas como tu próprio dizes: "quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto", a realidade do acontecimento acaba por ir ficando um pouco lendária. :)
EliminarUma tradição muito interessante que descolhecia por completo, e que gostei de ler.
ResponderEliminarUm abraço e bom domingo
Ao povo o que é do povo. Mainada!
ResponderEliminarBoa noite AC
Nada como a fome para mover revoluções. Um viva ao bravo povo que tomou o destino nas mãos e venceu!
ResponderEliminarQue inveja AC, que inveja :)
ResponderEliminarO povo é quem mais ordena
ResponderEliminarNinguém calará a voz ao povo
Nem o povo
Abraço
Ora aí está um dia bem passado à conta do Carvalhal. Há coisas que o povo não pode mesmo deixar passar :)
ResponderEliminarBoa noite AC, um abraço
Uma tradição que desconhecia e gostei imenso de ler. Deve ter sido um convívio muito bom, com a partilha generosa de comida, bebida e palavras de bem-querer...
ResponderEliminarGostei da história verdadeira que está por trás da tradição.
Uma boa semana.
Um beijo.
Muito interessante essa história.bjs
ResponderEliminarUma delícia de bem contada, esta narrativa !...
ResponderEliminarE quanto à participação nestes eventos colectivos, é sempre de aproveitar, especialmente em grupo.
Entrar no espírito, participar mesmo !
Nestes últimos tempos têm surgido algumas oportunidades que tenho aproveitado e de cada uma delas é um dia maravilhoso !
Abraço :)
Tradições que se devem respeitar e manter.
ResponderEliminarBom resto de semana
Uma tradição que desconhecia por completo, e que adorei descobrir, por aqui!
ResponderEliminarDeve ter sido um convívio super agradável! Para repetir, pois claro!...
Beijinho! Continuação de uma boa semana!
Ana
É muito bom relembrar as tradições para que sirvam de exemplo aos
ResponderEliminarque precisam saber que sempre há a possibilidade de se vencer os
poderosos.
um abraço
Adoro saber e ler "tradições" e esta deixou-me com água na boca. Na minha terra havia imensas e ia com frequência...mas tudo ficou como bem sabes.
ResponderEliminarGostei imenso deste post e obrigado pela partilha. Só lamento que em muitas coisas actuais o povo não se una mais e ponha troncos nas costas dos prevaricadores.
PS: Uma curiosidade: o que é um coelho de estalo? O pobre levou algum para morrer?:)))
Beijocas
:))
EliminarAcho que, se o meu pai lesse este seu texto iria gostar muito de fazer parte desse seu grupo, AC, ainda por cima existindo borrego, chouriças, coelho, feijão, vinho, arroz-doce, café e... muito convívio, conversa, ora, punha-se aí enquanto o diabo esfrega um olho :))
ResponderEliminarVida saudável, essa, muito perto da natureza, da terra. Gosto. Embora goste de Lisboa, disto de ser cosmopolita, existem laços que são inquebráveis. O apelo da natureza é grande. A vida com os meus avós até aos 7 anos, muito perto de ribeiras, árvores, montes, animais... fez com que o meu respeito pela terra seja maior.
Aceite um beijinho, AC :)
Desde logo o título deixou-me muito curiosa. Não conhecia.
ResponderEliminarAí está uma festa digna dos maiores pitéus. Um motivo de orgulho para o povo do Souto da Casa e para aqueles que, com eles, comungam ideais.
Beijinho, AC.