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Júlio olhava pela janela. Em frente, na pastelaria, algumas
pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Na esplanada,
indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais
à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para
nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas
apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e muitos,
oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Júlio abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo
alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou
três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a
introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos
roubados ao seu correrio diário, antes de ir aquecer a comida, feita na véspera, que ela e o
marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha
tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de
nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos
no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no
lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João
Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o e, sem dizer nada a
ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se
logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, alheado de tudo o que o
rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa,
que noutros tempos distribuía entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a
tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou
dissimulá-lo com a intenção de lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem
reparara que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no
lava-loiças. Disse-lhe, então, que estava preocupada com ele, que não gostava
de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria
muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram
acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas
informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era
um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Júlio não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha,
à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no
fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o
receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais
exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma
altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir,
mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos
netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João
Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua
meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia
fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e
só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no
fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando
chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o
jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é
preciso levantar cedo. E, no dia seguinte, num imutável ritual, lá iam todos
para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de
tempos, estes!
Depois da filha sair, Júlio ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos
inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido,
tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar
ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala
que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e,
com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o,
delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a
sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de
muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias
antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e
o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente,
pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os
movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação
ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para
trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma
resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem e descortinou o seu lugar, tirou o casaco e, com movimentos tranquilos, de quem sabe o que faz, sentou-se. Enquanto o ajeitava,
cuidadosamente, sobre as pernas, a sua mão, num gesto quase inconsciente, procurou o contacto do estojo, como se da mais preciosa coisa se tratasse. Maria aguardava-o, não
queria fazê-la esperar mais.
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Outubro de 2009.
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Classificou este texto com a etiqueta "Contos" mas, a maioria de nós sabe, que tem muito mais de realidade que de conto. Nestes tempos "modernos" não há lugar para os velhos, nem tempo para dar atenção, nem sequer para amar os novos, tudo é corrido e escorrido de sentimentos, a modernidade não se compadece.
ResponderEliminarBoa tarde, AC
Mais uma vez entristeci ao ler...
ResponderEliminarBem escrito AC! Bem escrito!
Tem razão, Noname. Vivemos num tempo em que tudo é mediático, em que só conta o momento. Memórias, o que é isso? Que importa o que aconteceu ontem? Curiosamente, nos novos programas propostos pelo Ministério da Educação, a aprendizagem da História é resumida ao mais básico, com supressão de etapas fundamentais para que se entenda o percurso ser humano. Parece que caminhamos para a servidão, não para o ser pensante.
ResponderEliminarBeijinho :
Decidir sobre o nosso fim... algo que esteve na ordem do dia... por estes dias!...
ResponderEliminarAcho que devemos mesmo poder decidir... o quando! O como... nem todos temos qualidade de vida, que possamos ir a uma clínica no estrangeiro, onde tal se paga... e bem certamente, para resolver o assunto... como um artigo de luxo... um derradeiro luxo...
Para os mais pobres... parece que resta... serem criativos... e desaparecerem como podem... por enquanto... se assim o entenderem... e se não entenderem acabar os seus dias, em algum lugar, que saibam... que os conduzirá ao mesmo lugar... num processo sofrido e lento... e em muito más condições também, por vezes...
Um tema... que tocará a todos... um dia... invariavelmente! A menos que tenhamos a sorte de um belo dia adormecermos... e não mais acordarmos... para nos preocuparmos com o assunto, à posteriori...
Adorei o texto, AC!... A vida... é mesmo uma verdadeira ida... sem volta... devíamos mesmo, poder escolher, qual seria o nosso derradeiro apeadeiro... da maneira mais digna possível!...
Beijinho! Bom fim de semana!
Ana
Obrigado, Boop.
ResponderEliminarEste é um tema que toca a todos, não há volta a dar-lhe.
Abraço :)
Ana,
ResponderEliminarDecidir sobre o nosso fim não é um tema pacífico. Já cogitei muito sobre o assunto, mas, para mim, torna-se impossível "legislar" sobre o assunto, tal a diversidade de situações. Na essência, e desde que a pessoa esteja em perfeitas condições de decidir, admito toda e qualquer resolução. Mas... como aferir a dignidade, que é a última coisa que nos resta?
Fica a questão, deveras pertinente.
Um beijinho :)
Talvez haja um ponto em que não valha mesmo a pena continuar a viver.
ResponderEliminarCaro Ac
ResponderEliminarFosse eu a responder à Ana, diria o mesmo.
Se fosse Marx, certamente este diria que uma vez humanizado o contexto o bilhete de Júlio seria de ida e volta, de regresso ao carinho dos netos...
Seu texto foi convertido
Eliminarnum conto de domingo
ao qual acrescentei
um epílogo
Foi um dos teus contos que imprimi pela emoção que provocou em mim.
ResponderEliminarHoje voltei a ler e todos caminhamos para o mesmo fim, uns mais rápido outros a penarem...e hoje mesmo soube que um amigo meu de infância suicidou-se pelos motivos que relatas por não aguentar as dores da alma e sobretudo as físicas. Ao longo da nossa amizade dizia-me sempre que o faria para "não dar trabalho a quem fica".
Não consigo dizer mais nada AC!
Beijos
Sim, havíamos de poder decidir livremente sobre o nosso futuro, em consciência. Ainda assim, quantas vezes nos sentimos sós e tristes com o peso da vida, do mundo e dos outros às costas e desejamos acabar com tudo e depois voltamos a querer viver, Decisões difíceis...
ResponderEliminarSimplesmente lindíssimo e comovente.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
Uma história triste e inquietante. Um sinal destes tempos que vivemos. Adivinha-se um final que não se deseja. Você escreve de uma forma magnífica. Leio-o com muito agrado...
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Lindo. Li-o ontem no blogue do Rogério. E fiquei como agora comovida, embora ele lhe desse uma esperança que aqui não existe.
ResponderEliminarUm abraço e uma boa semana
Esta é, embora muito bem narrada, uma história triste. Triste e bem real. E sendo bem real, só espero que o desfecho de muitas pessoas naquela idade que dizem já ser muita - o que raio será isso de: já ser muita, a idade (?) - seja completamente diferente.
ResponderEliminarAs pessoas desejam a vida toda, pelo menos a vida activa, de trabalho, conseguir chegar à idade da reforma para depois descansar, caminhar na vida sem relógios que os prenda, no entanto não se preparam para aquilo da solidão. Não sei se é possível uma pessoa preparar-se para a solidão, não faço ideia, nem sequer sei se é possível ensaiar essa mesma solidão com a intenção de a fintar quando a dita bater à porta, se é que solidão faz isso de bater à porta, parece-me mais que entra sem pedir licença e instala-se sem licença pedir. Triste, caramba.
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Deixo-lhe um beijinho, AC :)
Não é, decerto, por acaso que este texto, muito bem escrito, como é teu timbre, é publicado nesta altura. Escrito em 2009, é como se fosse agora, com um final aberto mas a encaminhar para a questão de se decidir sobre o modo de viver a existência. Toca, ai se toca! A realidade particular em que nele se centra é paradigma do que se vive...
ResponderEliminarBjinho, AC
Meu Deus!
ResponderEliminarBem escrito, mas tão triste!
Um alerta preocupante sobre o homem a desumanizar-se.
beijinho
Um bilhete que gostamos de ter a liberdade de adquirir. O teu texto entristeceu-me. É, no entanto, muito pertinente e bem notado (como se dizia).
ResponderEliminarBeijinho, AC.