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Margarida Cepêda, Avaliando o abismo
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Caminhava pelas ruas desertas, quase em bicos de pés, sentindo no ar a angústia e a incerteza, ampliadas em medos mil.
Deixou as casas para trás, agora mais solto, e embrenhou-se pela teia de caminhos rurais que davam acesso às numerosas quintas da zona. Um homem, concentrado na lavra dum terreno, manejava o tractor de forma tão natural que a máquina quase parecia extensão do próprio corpo. Um aceno, o retomar da faina. Para ele tudo parecia inalterável. Mais à frente, já perto da Quinta Grande, dois enormes cães, num latir ameaçador, dirigiram-se para ele em corrida vertiginosa. Estacou, de músculos tensos, preparando-se para a borrasca. Cão que ladra não morde, pensou, enquanto procurava um pau, não fosse o diabo tecê-las.
- Leão! Caniço! Venham cá!
O dono, de longe, impunha ordem na cena. Um respirar de alívio, um aceno de agradecimento. Ufa!
Caminhou mais vinte minutos em passo decidido e, finalmente, abeirou-se da falda do monte. Fez curta pausa para beber água e, saciado, embrenhou-se na encosta por uma estreita vereda, serpenteando por entre pinheiros e carvalhos. As árvores, a certa altura, começavam a rarear, dando lugar a um extenso giestal, muito denso, em pré-parto para o festival de cor com que iria engalanar, muito em breve, toda aquela parte da encosta. Um pouco mais acima, orlado pela mancha esverdeada, assomava um afloramento granítico, miradouro privilegiado de todo o vale. Faltava pouco para o alcançar.
Quando chegou, e ainda a recobrar o fôlego, o impacto da paisagem foi imediato. Deu mais uns passos, dilatou o olhar e começou a absorver o que o rodeava, dando início ao cerimonial: trezentos e sessenta graus a rodar, muito lentamente, sentindo-se, a cada segundo, a penetrar noutro patamar. Por fim, já imbuído da essência do lugar, escolheu, estrategicamente, a rocha que lhe proporcionasse maior amplitude e sentou-se. Estava pronto para mitigar a preocupação que o trouxera até ali.
Voltou, agora noutro registo, a distender a vista pelos campos que ladeavam o rio, outrora com águas mais recomendáveis, e acabou por se fixar, bem no extremo da paisagem, no liliputiano casario da urbe, onde as pessoas aguardavam, ansiosamente, o sinal para saírem da caverna.
Há muito que se adivinhava o desenlace. Cientistas, filósofos, biólogos, ambientalistas, sociólogos, poetas, músicos, e muitos outros, bem se esforçavam por alertar, mas os seus avisos caíam em saco roto. O mundo parecia ter enlouquecido, estimulado por uma corrida desenfreada, bem oleada por alguns gurus da economia, em que ninguém parecia querer prescindir da ilusória sensação de felicidade que lhe causavam os pequenos brinquedos, suprema recompensa de toda aquela azáfama: casas opulentas, roupas de marca, carros topo de gama, férias em terras exóticas, telemóveis de última geração... Alguns, nas ínfimas brechas que o parco tempo lhes permitia, ainda intuíam o desastre, mas logo soava o apelo da sirene. E a corrida desenfreada continuava, sem pausas, com a promessa cantada, cheia de luzes, de acesso ao paraíso consumista. O ter, ter cada vez mais, tinha-se sobreposto ao ser. Devastadoramente. Como é que permitimos que se chegasse a este ponto? Que fizemos nós da nossas vidas?
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(continua)
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Creio que, mais do que aquilo que fizemos, é o que continuamos fazer, mesmo sabendo que cavamos a própria tumba. Estranhos seres, somos nós.
ResponderEliminarBoa noite, sô AC
E o mundo vem de encruzilhadas mil, pois não é que estamos vivendo uma nesse momento!!? Coisa que nós não imaginaríamos. Claro, uma encruzilhada bem mais sofisticada...
ResponderEliminarSerá que adianta deixar aqui meus votos de "uma boa semana"?
"O ter, ter cada vez mais, tinha-se sobreposto ao ser. Devastadoramente. Como é que permitimos que se chegasse a este ponto? Que fizemos nós da nossas vidas?"
beijo!
É exactamente assim! Acrescido de muita sensibilidade...que só a tua escrita permite.
ResponderEliminarMal posso esperar a continuação.
Saúde!
E o mundo chegou a uma encruzilhada. Possa a humanidade refletir e escolher o caminho certo porque a natureza não perdoa, e à próxima, livra-se de nós como já se livrou de outras espécies dominantes em passados remotos.
ResponderEliminarAbraço e boa Páscoa.
Esperando pela continuação. Há tempos venho pensando em como foi que a humanidade se meteu por esse caminho, que me parece sem volta.
ResponderEliminar"Eli, Eli, lama azavtani?"
ResponderEliminar'medos mil' _ uns mais outros menos e seguimos todos a contar quantos onde e o que mais vem por aí ... que encruzilhada,AC !
ResponderEliminarQuando será teremos o 'respiro de alívio?
Por ora, só dúvidas.
Que passe logo,amigo Um pouco cansada estar comigo mesma rsrs
meu abraço e prossigamos com coragem!
A realidade de muitos que só sabem ter e ter cada vez mais, sem sequer pararem um segundo para pensar se valerá a pena "ter" ou seria bem melhor ser?!
ResponderEliminarGostaria que muitos mandantes e não só... pudessem ter uma dose certa(não desejo a morte a ninguém) e malharem com o corpo nos locais onde muitos caem sem qualquer merecimento. Fiz-me entender?
Beijos AC e sento-me na rocha a pensar que realmente sou uma carta fora do baralho e que sempre disse isto um dia vai rebentar!!!!
...entretanto ... as águas do rio da minha aldeia
ResponderEliminartransportavam memórias mas sempre têm um caminho
até o mar as receber num abraço de limos
Abraço sempre caro poeta
Todos somos caminhantes, mas poucos são os que páram durante a caminhada, olham à sua volta, contemplam a beleza da Mãe Natura e se sentem gratos sem desejar nem ambicionar mais do que o necessitam para viver.
ResponderEliminarBeijinho, AC.
Boa tarde meu querido amigo estou lhe seguindo. Muita saúde para você e a sua família. Se um dia vier ao Rio de Janeiro serei seu guia turístico com todo prazer.
ResponderEliminarAté ser dia
ResponderEliminarOlá, será que sabemos a resposta? Aguardo a continuação...boa Páscoa. Beijos e abraços Marta Vinhais
ResponderEliminarSerá que a partir de agora vamos repensar as nossas escolhas ou vai tudo voltar ao mesmo?
ResponderEliminarBoa noite AC
Se não aprendermos a respeitar a natureza, um dia seremos vencidos por ela.
ResponderEliminarDentro do possível, tenha uma tranquila e boa Páscoa.
Beijinhos
Caro amigo, AC!
ResponderEliminarSem a natureza não és nada, pois não? Dá ideia que escreves à medida que te embrenhas nela. Hás-de descobrir sempre uma pedra tua confidente. Como te entendo! Diz-nos agora ela que fomos longe demais e teve que agir. E como se regenera!
Sabes como aprecio a tua escrita, tão natural como uma planta espontânea a abrir asas.
Beijinho. :)
Agora somos funâmbulos a lidar com as nossas próprias vertigens…
ResponderEliminarMagnífico, o texto…
Uma boa semana.
Um beijo.
O grande problema da humanidade; deslumbrada com o ter, esqueceu-se literalmente do ser! Belo texto!
ResponderEliminarBeijo, AC !
Meu caro AC
ResponderEliminarLi e reli o seu texto. Qualquer coisa é pouco para a beleza que dele emana.
Pincei um único período que talvez traduza o espírito da época que vivemos. Eis o que diz o narrador e que podemos incorporar:
"Estava pronto para mitigar a preocupação que o trouxera até ali".
"O que fizemos das nossas vidas", também pergunto.
Um grande abraço,
Um lindo texto de tão verdadeira reflexão...chegamos num momento crucial de nossa caminhada quando precisamos fazer a escolha do que realmente precisamos na senda do nosso destino.
ResponderEliminarUm abraço
E a pergunta seguinte poderia ser... onde foi que nos perdemos de nós... se é que alguma vez nos encontrámos... parece que é mesmo o grande questionamento que persegue a humanidade ao longo do tempo... num eterno ciclo!
ResponderEliminarComo sempre, um texto de uma riqueza descritiva imensa... bem dentro do espírito do momento actual... que nos remete para toda a espécie de inquietações, incertezas, e de introspecções... e para este presente de hoje... onde estamos de gadgets na mão... apontando para o túnel do tempo... que nos envia em loop, para a época dos nossos avós, talvez para reaprendermos o que é humildade... ao bom estilo da Grande Depressão de 1929... Ainda lá não chegámos... mas por estes dias, e nas próximas semanas... assistiremos à América, a reaprender tão dura lição... pois foi lá que tudo começou, na época... mas por enquanto... estão quase lá... ainda tentando animar uma economia, nas próximas semanas, sem sucesso possível, a curto prazo, por entre gente moribunda, doente, em recuperação, e psicologicamente afectada, por perdas... de entes queridos... empregos... e de uma realidade, que tinham antes... e que perdeu todo o sentido e significado, no presente... com as grandes companhias gigantes a colapsarem... como um baralho de cartas... cadeias de hotéis... companhias aéreas... e por aí fora... perante um pequeno vírus... revelando-se assim o grande império... num gigante, com pés de barro... que investiu em tudo, e por todo o lado no mundo... menos na saúde do seu próprio povo...
Estamos mesmo todos numa grande encruzilhada... pois economicamente falando, havia uma frase que se materializou da forma mais cruel e inimaginável possível, nestes últimos meses... quando a economia da China espirra, o resto do mundo apanha uma pneumonia... foi preciso um vírus, para nos mostrar tal, literalmente...
Mas o grande problema, é que no momento... temos todas as economias do mundo inteiro, a espirrar em simultâneo... e ainda estamos todos equipados, a assistir a tal, com ténis de marca e telemóveis de última geração na mão... O mundo vai ter de se reinventar... E o nosso pequeno Portugal, por ter uma reduzida dimensão, terá uma metamorfose bem mais acelerada... até nisso será pioneiro... pois em um mês, reinventámos já muito do funcionamento do nosso país... acho que ainda seremos todos um caso de estudo, num laboratório qualquer!... Que seja, ao menos, pelos melhores motivos... :-))
Podemos ainda não nos termos apercebido disso... mas o nosso país, será um dos países mais bem preparados, para dar a volta a isto... mas será duro!... Estamos todos no início de uma longa maratona!...
Beijinho, AC!
Ana
E se todos nos dispuséssemos a subir ponto da encruzilhada para parar e pensar?
ResponderEliminarQue nos diriam os nossos pensamentos mais íntimos de seres sensíveis ao que nos rodeia?
Pelo menos alguma inquietação nos deixariam. Pelo menos viria aquela sacudidela de que eu não fiz nem faço tudo o que está ao meu alcance para dar valor ao Ser imanente numa visão mais transcendente.
Faz-me bem ler o que escreves meu amigo. Lava-me a alma. Grande abraço
Tanto num texto como noutro, há algo que ficou por mencionar (no meu comentário anterior) e que é a perfeita escolha de imagens que acompanham as palavras.
ResponderEliminar"O ter, ter cada vez mais, tinha-se sobreposto ao ser" Muito se resume a isto e penso que não vai mudar… prova o facto de estarmos a entrar num momento em que vamos preparar o regresso a uma normalidade que já não existe, sem o pesadelo ter terminado, em nome do "ter", porque o "ter" evita despedimentos, porque o "ter" tenta pagar as contas… mas e quando o "ter" deixar de significar, tão só porque a humanidade desapareceu?
Abraço, uma qualidade de escrita que marca.
AC
ResponderEliminarMagnifico o texto, vou ler a segunda parte.
beijinhos
:)
O "ter", pode ser revisto em outros desdobramentos, talvez a incerteza do porvir, responderá no tempo oportuno esses outros meandros.
ResponderEliminarDesejo que o novo "ter" seja reconceituado como: ter mais tempo para quem amamos;
ter mais tempo para os amigos;
ter mais tempo para o que gostamos de fazer;
ter mais respeito pela natureza;
ter a consciência de que não podemos viver sem a natureza, enfim, ter outras formas de estarmos no mundo.
Embora o texto nos traga um suspense, uma pausa nos sentidos e a sensação de que nunca saberemos de tudo...
(Vamos para a parte II do texto)
Beijinhos, A.C.