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Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias Terrenas
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Este blogue sempre fez questão de apenas publicar textos originais do seu autor. Contudo, e porque sim, há sempre uma primeira vez para tudo. No abrir da excepção, deixo-vos com uma crónica de Antonieta Garcia, minha antiga professora, publicada na semana passada no Jornal do Fundão.
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Eis que de repente o axioma do progresso contínuo cai, o Coronavírus entra em cena e dá a volta ao mundo. Roído de miasmas de tédio, embarcou. Vestiu-se de mandarim, pôs a coroa. Cruel, compilou memórias doridas da maldade humana, sentiu prazer, inoculou-se com o fascínio da violência. Agora, viaja, contagia, ceifa vidas, não dá tréguas. Encerrou-nos no Medo, excluiu a Vida. Maledictus! Tanto que sonhámos com a construção de uma parúsia humana, iluminada pela Ciência, pela Cultura, pela Arte… Onde se ocultam as luzes? Agora, somos uma bastilha tomada por mensageiros de ignorância. Aqui, habitam senhores construtores de fronteiras, xenófobos, que afetam as relações entre povos, poluem emoções…. Há refugiados em peregrinações de angústia, a suplicar solidariedade e não se salvam. Que incapacidade de amar o próximo é esta? O céu vê, ouve, emudece.
Germinam, agora, mil diabos que atormentam. Levantam muros de crueldade. Novos tiranos tanto negam como afirmam; as palavras desfazem-se-lhes em bolor lento, enterram-se na vala comum das redes sociais, os mais recentes pilares dos senhores do mundo. Por ali, formigam robôs em textos formatados. Manipulando glórias quixotescas e grupais, soltaram a hipocrisia e são feras vigilantes de comportamentos e falas. Tuítam e regurgitam ódio, brigam furiosa e desesperadamente com o Tempo devorador de certezas.
Quem abre as janelas à fraternidade? Que mistério rege a doença do poder, do conformismo e da indiferença?
Já se ouvem profetas da desgraça a apregoar o valor purificador do sofrimento, a lembrar Job, o homem justo, protagonista do texto bíblico, que ousa debater com a divindade o seu tormento e manifestará um desejo:
Pereça o dia em que nasci! E Cristo perdoará aos fariseus: Perdoai-lhes Pai, porque eles não sabem o que fazem. Mas em cada dia, no mais fundo de si, os meninos da Síria que enregelam de frio e todos os peregrinos de fomes e vizinhos da morte hão de repetir a súplica de Jesus: Afasta de mim este cálice, Pai!
Mil diabos atormentam o nosso tempo; fervilham ideias que agigantam o deserto do espírito. O mundo empobreceu pela banalização; a verborreia caótica, oca e ruidosa infernizou a sociedade. O “fascismo da vulgaridade” (Steiner) irrompeu. Agora, a nostalgia alia-se ao desencanto de um período que divorcia a Humanidade da ciência, da arte, da filosofia. O dinheiro tornou-se deus de um público massivo, formatado, antítese da auctoritas, da cultura animi. Quanto ódio suscitam intelectuais, artistas…
Por todo o lado, reina uma inquietação a enfrentar a Esfinge, a tentar romper a teia enovelada em expectativas disfóricas alimentadas pelo Medo do futuro, pela fatalidade do fim. Agora, o reino é o da roleta russa. E o Coronavírus jogou. Como é Senhor Trump e apaniguados? Que é do Muro para o impedir de entrar, para o deter? Com que armas vai refrear a contaminação do Coronavírus, microscópico, mas dono do mundo?
Ai, que anseio tão forte de alívio! Ai, o desconcerto entre a solidão da doença e o desejo de amar, entre o odor sufocante de tantos cadáveres e o sopro de vida…
O Coronavírus vestiu-se de mandarim, fez-se deus do mal. Agora, que ressoe a esperança numa voz louca de amor e enrouqueça a gritar que a vida gira que gira, geração em geração….
Quantos somos os que ajudamos a virar? Estamos tão cheios de fome do Sol, das cerejas…. Queremos tanto abraçar todos os amigos!
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Antonieta Garcia
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Uma descrição desoladora de uma mundo caótico...
ResponderEliminarMas, nestes tempos difíceis, há testemunhos do bem que muitos estão a fazer, da sua solidariedade e bondade para com vizinhos, estranhos...
Talvez nestes dias tenha havido um contacto mais abrangente e mais frequente, na plataforma virtual, entre amigos e familiares. Talvez seja altura de repensar como poderemos ser melhor como seres humanos e atuar como cidadãos mais responsáveis. Por outras palavras, fazer a nossa parte. E esta é uma perspectiva mais positiva que nos incentiva a fazer mais e melhor.
Reconheci imediatamente o estilo de Bosch. Um estilo... que não é o meu estilo. :)) Por muito que tente não consigo memorizar o seu nome próprio, recordo-me apenas que começa por H. Memória seletiva... :))
Devo acrescentar que considerei o artigo muito bem escrito. :))
ResponderEliminarNada a acrescentar, AC.
ResponderEliminarA não ser, agradecer-te a partilha desta excelente Crónica, reflexo da crua realidade que o mundo inteiro atravessa.
Um beijinho, AC!
Irretocável esse texto e foi uma bela ideia compartilhar conosco! Gostei muito! abração,chica
ResponderEliminarMeu amigo, que professora tiveste! Na lírica da linguagem, uma análise aguda do momento que enfrentamos.
ResponderEliminarObrigado por partilhar connosco um texto tão bem escrito, sobre a triste realidade que vivemos.
ResponderEliminarAbraço e saúde.
Sabe que mais? Caramba! O senhor teve uma mestra, que sorte boa.
ResponderEliminarBoa noite, sô AC
Temos TODOS que observar o distanciamento social temporariamente para debelar a pandemia.
ResponderEliminarAquele abraço, bfds
Nossa!
ResponderEliminarUm texto impecável! Ficamos murmurando, muito baixinho e repetindo cada palavra escrita, como se a pronunciássemos pela primeira vez...
Talvez seja...
Talvez o COVID-19 tenha o propósito de nos fazer mais reflexivos, cuidadosos uns com os outros, com a vida e com o Planeta...
Talvez seja a inauguração de um outro tempo, onde o amor esteja mais presente entre as pessoas e as pessoas mais presente na vida das outras...
O fato é que esse texto nos dá uma inquietação e uma convicção de que nunca mais seremos os mesmos depois de lê-lo, saímos daqui muito maiores do que chegamos.
Obrigada, pela partilha e todos os parabéns à sua Mestra.
Em tempo: a imagem que ilustra o texto, não poderia ser mais apropriada do que este tríptico do Bosch, um dos meus pintores favoritos.
Beijinhos, cuida-te bem.
:)
Faço uma vénia à tua ex-professora por este retrato tão real. Obrigado pela partilha.
ResponderEliminarBeijos e bom fim de semana
Uma professora e tanto. Imagino-a carinhosamente a advertir os seus alunos para os males da vida com palavras doces mas certeiras. Que sorte AC.
ResponderEliminarBom fim de semana
Sabes o que me fez pensar?
ResponderEliminarNesta necessidade humana de personificar um inimigo, de encontrar um virus mau, atribuir-lhe desejo, intenção, propósito, de o tornar "dono" da situação.
Remeteu-me para a criação dos Deuses, inventados para melhor podermos enfrentar o imenso desconhecido a que a nossa condição nos obriga.
Um virús, que nem sequer é considerado um organismo pela ciência, é visto agora como um castigador. como se a natureza fosse dotada de uma vontade explicita e tivesse perversamente criado uma mutação viral que pudesse castigar a raça humana.
Também há as teorias da conspiração - das armas biológicas, das lutas de poder, das jogadas económicas. Confesso-me muito pequenina para pensar a esse nível.
Mas é verdade que esta pandemia tirou o palco a tantas outras atrocidades que estão neste momento a acontecer neste planeta. Mas que, como não batem directamente à nossa porta, podem ficar por ora debaixo do tapete, como areia que se atira aos olhos. Em vez disso somos metralhados com milhentas informações (quem saberá distinguir as verdadeiras das falsas noticias?) ao ponto da saturação.
Só mais uma coisa!
Não consigo maravilhar-me com os golfinhos em Veneza, nem com macacos na Tailandia, ou os Javalis em Espanha (nem os pavões aqui bem mais perto), ou até com a diminuição da emissão de CO2. Dá-nos informação sim - não a ignoro. Mas o preço é muito alto!
A mim resta-me confiar na capacidade humana de adaptação, na ciência. Temos de ver este virús como um problema a resolver e não como um bicho papão que invade a mente e se transforma num pesadelo colectivo de características mágicas.
Ciência! Medicina! Sociologia! Química! Biologia! Engenharia!
Desculpa o comentário longo.
O Homem criou deuses para sua salvação
ResponderEliminarmas é no silêncio dos laboratórios
que os cientistas trabalham para descobrir
uma vacina
Abraço
Um estrondo! Uma radiografia à humanidade cheia de feridas e cicatrizes.
ResponderEliminarTambém quero sol, cerejas e abraços.
Um beijo, AC.
«Quantos somos os que ajudamos a virar?»
ResponderEliminarUm poeta, querido, lhe responderia
«Somos muitos, muitos mil»
...mas para o que der e vier
meu amigo
ela que conte comigo!
Texto maravilhoso! Vejo bem porque escolheu a colocar por aqui. Ela escreve muitíssimo!
ResponderEliminarUm beijinho ;)
Gostei imenso de passar por aqui hoje. Grata pela excelente partilha, AC.
ResponderEliminarO mundo foi obrigado a travar.
E vamos assistindo ao pior, mas também ao melhor da humanidade. Numa altura de fronteiras fechadas e portas trancadas, nunca abrimos tanto a janela, nem jamais estivemos tão próximos...
Talvez ainda haja esperança para a humanidade.
Todos queremos sol, cerejas e abraços.
Deixo um beijo.
O materialismo tem reinado cada vez mais...
ResponderEliminarÉ tempo de crescermos espiritualmente e humanamente, de sairmos para fora de nós.
Uma Santa Semana!
Bjos.
Li e reli o texto tão lúcido de Antonieta Garcia. Cada palavra me tocou a pele como se fosse fogo.
ResponderEliminarUma boa semana com muita saúde e esperança.
Um beijo.
Uma leitura notável... destes estranhos tempos, que se abateram sobre todos nós... em que parece que... foi feita mesmo a vontade... a todos quantos desejavam erguer muros, para não ousar resolver problemas... ainda que de uma forma distorcida...
ResponderEliminarAgora... cada país encontra-se por si só... a enfrentar esta guerra, muito sua, contra um inimigo invisível, que... e sem que antes que cada um, arrume muito bem, a sua própria casa, do ponto de vista social, económico e financeiro... estará pronto de novo, a ser intrusivo, se alguma abertura para outro país for intentada...
Isto, dá mesmo que pensar!... Pois os casos importados... serão o novo problema, dos países, que até já melhor conseguiram conter esta pandemia...
Fabulosa partilha, AC!... Grata por isso!
Beijinho! Votos de uma semana tão boa, quanto possível, dadas as circunstâncias!...
Ana
AC
ResponderEliminarem boa hora, partilhou aqui este texto da sua professora Antonieta Garcia, pois se assim nao fosse, eu e muitos dos seus leitores náo teriam acesso a ler.
Um texto fabuloso, dos melhores que li até agora sobre o assunto.
Obrigda pela partilha.
Boa semana e boa Páscoa dentro dos limites que todo nós sabemos.
beijinhos
:)
Lindo texto. Este excerto tocou-me especialmente:«Mas em cada dia, no mais fundo de si, os meninos da Síria que enregelam de frio e todos os peregrinos de fomes e vizinhos da morte hão de repetir a súplica de Jesus: Afasta de mim este cálice, Pai! »
ResponderEliminarAmigo, desejo que esteja tudo bem contigo. Um abraço
Os bons professores (vá, e também alunos) merecem quase sempre uma excepção. Sobretudo quando têm este calibre.
ResponderEliminarDesejo-lhe tranquilidade, nestes dias estranhos que atravessamos.
Abraço
Ruthia
O Berço do Mundo
E fez muito bem abrir a excepção!
ResponderEliminarAdorei!
Muito bem escrito, muito rico de conteúdo e de palavras, saboroso de ler!
Beijinho amigo
Ainda é cedo para qualquer projeção sobre o futuro. Ainda é cedo. Sobre o presente que o texto da professora Antonieta é inexcedível. Irretocável. Irretorquível. E não há palavras para enaltecer suas virtudes de professora.
ResponderEliminarUm abraço, extensivo à Mestra!
Cuidem-se os dois!
Um texto magnífico! Tanto pela irrepreensível forma, como pelo conteúdo.
ResponderEliminarFizeste muito bem em mostrá-lo.
Saúde!
A Doutora Antonieta no seu melhor, naquilo que ela sabe fazer muito bem, que é reflectir, filosofar. Não podia estar mais de acordo com ela. Foi minha professora e sempre admirei a sua inteligência e capacidade. Aprendi muito com ela e continuo ainda hoje a aprender. Grande texto. Melhor, grande análise da pandemia e do ser humano, pouco humano.
ResponderEliminar"Porque sim" é um bom motivo para espalhar o pensamento e a escrita perfeita. Ainda mais com o bónus de Bosch.
ResponderEliminarAbraço.