segunda-feira, 10 de maio de 2021

À TUA, AVÔ!

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Chegara de véspera, dando folga à cidade. Após um sono retemperador em casa dos tios, sempre prazenteiros e sequiosos de novidades, deixou para trás as últimas casas da aldeia e, com um suspiro profundo, como que a antecipar as dores da empreitada, meteu-se por uma vereda que, dizia-se, tinha sido utilizada pelos contrabandistas de outrora.
A pouco e pouco começou a sentir o corpo a corresponder, cada vez mais solto, enquanto ia ultrapassando o que restava dos castanheiros que, noutros tempos, eram orgulho das gentes raianas, agora a recuperarem da doença da tinta. Deles muita fome se saciou, com a castanha a servir ementas várias. 
Continuou, até entrar numa zona de estevas e giestais, com um ou outro afloramento granítico a adornar a paisagem. Zumbiam abelhas, borboletas emergiam na sua dança silenciosa, a passarada fazia-se notar. De vez em quando, à sua passagem, sentia o incómodo dum ou outro lagarto, bem manifesto no som que emitiam na sua debandada. Um besouro, qual Hércules duma outra dimensão, empurrava uma bola de argila, sabe-se lá para onde, com uma incrível facilidade. E ele, a princípio receoso, começou a sentir-se envolvido na paisagem, numa amálgama de odores, cores e quase imperceptíveis movimentos, enquanto descobria, como se tudo fosse a primeira vez, a diversidade de vida que por ali discorria, longe de qualquer holofote.
O tempo passou, com o pó a colar-se na pele, mas ele nem dava conta. E só quando, depois de galgar mais uma pequena colina, se deparou com as águas dum tranquilo e afável rio, tal como lhe tinha dito o Zé Espanhol, velho sobrevivente de outras eras, é que intuiu que tinha chegado à fronteira.
Aproximou-se da margem. Tirou a mochila, despiu-se sem qualquer pudor e, com algum receio, entrou na água. 
Duas ou três bogas, incomodadas na sua pacatez, deram às de Vila Diogo, num movimento brusco. Um melro, no seu canto assobiado, parecia rir-se da sua ousadia. E ele, com a água a acariciar-lhe o corpo, foi soltando as primeiras braçadas, enquanto meditava que, no tempo do avô, atravessar o rio a nado era uma necessidade para driblar os guardas e os carabineiros, nunca um prazer. 
Depois do banho, foi a vez do conteúdo da mochila fazer maravilhas. Limpou-se bem na toalha felpuda, vestiu roupa seca e apanhou lenha nas redondezas. Depois, com a solenidade dos momentos rituais, acendeu uma fogueira, tirou a cafeteira da mochila, encheu-a com água do rio e colocou-a ao lume, bem assente em duas pedras. Já com a água a ferver, tirou da mochila o café e, delicadamente, deitou duas colheres na cafeteira. Mexeu bem e, operação fundamental, tirou uma brasa do lume, tal como os d'antanho faziam, e meteu-a na cafeteira. A seguir, sempre sem pressas, foi à mochila buscar uma moldura com uma fotografia antiga do avô e colocou-a de frente para ele. Pegou então numa caneca, encheu-a com o escuro e aromático líquido, pôs-lhe um pouco de açúcar, como o avô gostava, e mexeu demoradamente, como que a adiar o grande momento. Finalmente, com ar compenetrado, levantou a caneca e disse, numa voz emocionada:
- À tua, avô!
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18 comentários:

  1. Até eu me emocionei com esse brinde, feito com a bebida que mais gosto desde miúda. O quente, aromático, doce café, tal como o fazia Mestre João Baptista Moreno, o único Avô que conheci.
    Gostei. Gostei muito desta tua bela história, Mestre AC!

    Um forte abraço!

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  2. Senti aqui o cheirinho do café feito no campo:)
    ~CC~

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  3. Maravilhoso quadro de recordações e memórias inesquecíveis. A foto está 5*****. Foi tão bom passar por aqui, obrigado AC!

    Beijocas e um bom dia

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  4. Alguns dos melhores momentos e lugares da nossa vida... têm que ser partilhados, com os nossos... de alguma forma... pois certamente eles nos terão de alguma forma, conduzido a eles!
    Adorei este fantástico conto, AC... com aroma a Serras, paz... e café!...
    Beijinhos! Feliz semana!
    Ana

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  5. Não tomo café, mas não deixei de achar curioso o método de preparo. Um relato de caminhada, assim tão interessante, traz a expectativa de que, por aqui, a pandemia resolva cair fora, e as trilhas sejam possíveis outra vez, com toda a segurança.

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  6. Me senti presente nas tuas palavras e por momento senti a agua do rio grata por compartilhar as tuas belas palavras

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  7. O Cosmos é um pequeno grão
    de sabores aromas
    e outros gestos
    Abraço

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  8. Olá, AC!
    Um conto muito interessante pela trilha, pelo lado natureza, pelo café coado na hora, pelo brinde. Tudo talhado pela boa escrita do autor.
    Tenha um final de semana abençoado!
    Abraços fraternos

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  9. Um conto emocionante ! Descrito, vivido e saboreado, com a serenidade de quem homenageia alguém muito importante da sua vida.
    Uma foto de fazer inveja.
    Tudo em harmonia AC. Parabéns!

    Beijinho

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  10. Estive a ver um filme tal foi a arte visual que imprimiu à narrativa. Parabéns e junto-me ao seu brinde.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  11. Passando a deixar um beijinho, e votos de uma boa semana... e aproveitando para dizer, que umas palavrinhas do AC, ficarão em destaque por um tempito, por lá no meu canto!
    Se houver algo na tradução que ache menos bem, será só dizer-me, que altero de imediato!...
    Beijinhos! Tudo de bom!
    Ana

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    1. Já vi e... aprovação total. Muito grato, Ana.

      Um beijinho :)

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  12. Fantástica publicação! :)
    -
    Beijos. Boa noite!

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  13. Que maravilha ter chegado aqui num saltinho para dizer que comigo apesar de andar afastada, está tudo sereno :)
    Adorei ler estas palavras que me fizeram viajar no tempo.
    Que bonito gesto de amor, merece sim um brinde!
    Abraço e brisas doces AC
    Só mais uma coisinha :) quando deixei i recado no Parapeito a dizer que era avó da Laurinha, nao sabia ainda que ia de novo ser avo :)
    Venha lá então o 5 neto :)*

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  14. Um texto maravilhosamente intimista que vai fundo na lembrança, atinge a alma e rebate no coração...e penso ser um clássico de recordação.
    Um abraço

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  15. Mais um belíssimo texto que me encantou.
    Abraço e saúde

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