segunda-feira, 21 de junho de 2021

PULSANDO PARA LÁ DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS

.
Margarida Cepêda, A forma é o invólucro da pulsação
.
.
O bebé chorava, de forma desesperada, pela ausência da aura materna, enquanto o adolescente exultava, ainda que de modo incipiente, pelas mesmas razões. Um não se queria desligar, o outro começava a dar os primeiros passos para se desconectar. Ambos por necessidade.
A Rita subia, apressada, as escadas que a levariam ao miradouro, impelida pela vontade de ver e sentir quem esperava por ela. O João, num escritório dum 12.ª andar, tentava iludir os avanços da chefe. A Sílvia, enquanto abraçava a filha, pensava na melhor forma de lhe arranjar a roupa de que ela tanto carecia. O António sentava-se, quase conformado, perante os infrutíferos esforços para arranjar um novo emprego. A Eva, na casa de banho, socorria-se da maquilhagem para tentar ocultar as olheiras dum sono incerto. O Carlos, cabisbaixo, sentia que tinha que fazer o que não queria: incomodar os pais para o pagamento da prestação que se aproximava. A Nocas, entediada na espreguiçadeira, suspirava pelas festas com os amigos.
A Florbela e o Jacinto viviam no mesmo Lar, mas não se conheciam. Partilhavam, contudo, o mesmo sentir: a ausência da família, a falta de liberdade e, acima de tudo, sentiam que já não contavam. Sem se darem conta, as memórias dum ser único, a mãe, começou a povoar-lhes os dias, amaciando-os, qual porto de abrigo para os preservar daquela realidade. Mas não chegava. E o Jacinto, de tempos a tempos, com o olhar cada vez mais apagado, lembrava-se das palavras do poeta José Gomes Ferreira: viver sempre também cansa. Duma forma mais profunda, estava na hora de voltar, como canta Abrunhosa, para os braços da sua mãe.
.
.

16 comentários:

  1. Poeta , tenho ficado distante da internet e assim , também dos blogs dos amigos . Quando aqui chego e me deparo com post tão bonito me emociono . Seu olhar sempre atento e sensível sendo compartilhado com generosidade é uma benção .
    Obrigada .
    Beijos

    ResponderEliminar
  2. Gostei, sobretudo do final ; "Viver para sempre também cansa"! bem verdade! :)
    ~~
    Queria ser, muito mais, que um Ser
    ~~
    Beijos, e uma excelente semana.

    ResponderEliminar
  3. Hoje, pintou em dégredé de cinzas, salvo, raros momentos, as cores originais da vida. Tela triste, tão plena de verdade.

    Boa tarde, sô AC

    ResponderEliminar
  4. Afinal, um post urbano! Mudem-se os nomes, as histórias irão se repetindo, tenho certeza, em muitos lugares.
    Vou reler umas duas ou três vezes. Obrigada por postar, tenha uma ótima semana!

    ResponderEliminar
  5. Fixei os olhos na imagem e quase que me esqueci de ler o texto. Mas li e... gostei bastante.
    .
    Feliz semana. Abraço
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  6. Urbano, desta vez, mas pleno dessa vida que se desdobra em tantos lugares. Sempre com a sensibilidade desse teu olhar.
    Beijinho

    ResponderEliminar
  7. Um pedaço da vida sem história de tantos Jacintos, por esse mundo fora tenham eles o nome que tiverem.
    Abraço, saúde e boa semana

    ResponderEliminar
  8. A tua sensibilidade diz tudo. E o arremate com um verso de José Gomes Ferreira. É reler e treler.
    Um abraço, caro amigo!

    ResponderEliminar
  9. Profundo e comovente de tanta gente que luta, labuta e pensa sempre no possível regresso e quantas vezes isso acontece tarde demais? Imagem e texto magníficos e deixo-te um enorme abraço.

    ResponderEliminar
  10. Tantas vidas e tão diferentes. Mas é a solidão dos mais novinhos e dos velhos que mais me toca, são nestas margens que a fragilidade é maior.
    ~CC~

    ResponderEliminar
  11. Uma paisagem cada vez mais presente nos corações e nas vidas de tantos homens e mulheres.
    Felizes os que ainda se aconchegam a esse calor materno.
    Um texto belíssimo que revela uma vez mais, a sua enorme sensibilidade. AC.

    Um beijinho.

    ResponderEliminar
  12. Lembrar José Gomes Ferreira
    é mais que olhar
    é ver
    para lá das palavras
    Abraço

    ResponderEliminar
  13. Um texto original onde pontuam recortes de vida. E tantos outros poderiam constar! O princípio e o fim da vida conferem organização e arrepio.
    Um beijo, AC.

    ResponderEliminar
  14. Regressar ao inho é uma inevitabilidade, em qualquer altura ou latitude, para todos os estilos e formatos. Até os marcianos poderiam ser nomeados.
    A esteva e as cerejeiras são boas de ler, aqui.
    Voltar ao JGF é um caminho.

    Abraço, Amigo AC.

    ResponderEliminar
  15. Retratos dum atribulado quotidiano... no ciclo da vida... que se completa... ou quiça se renova... quero crer que cada fim, corresponda a um outro recomeço, num outro tempo ou lugar...
    E o Jacinto... ainda será um privilegiado, terminando os seus dias, num lar... já que muitos dos nossos idosos, ficam por sua conta... até alguém os encontrar...
    Mais um pedaço de boa escrita, com muito para se reflectir!...
    Beijinho
    Ana

    ResponderEliminar