domingo, 22 de agosto de 2021

INTERIORIDADES

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Margarida Cepêda, Procurando o princípio
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O ser humano, dito de forma básica, sempre foi assim: quanto menos sabe mais pensa que sabe, abrindo a porta à arrogância e às maiores atrocidades; quando, após a resolução de alguns problemas, mais pensa que sabe, sentindo-se preparado para qualquer empreitada, basta o dobrar de algumas curvas para vislumbrar que, afinal, pouco ou nada sabe, sentindo necessidade - demos graças - de bater à porta da humildade, caminho essencial para almejar alguns resquícios de sabedoria.
Dito desta forma, quase parece simples. Mas o caminho é longo, muito longo, com os escolhos populistas, os clássicos escolhos, a tentar inundar as marés. Sempre foi assim (antiga Grécia dixit), sempre assim será.
Lúcia andava desencontrada dos movimentos naturais: as marés não se coadunavam com o seu sono, a chuva caía na pior altura, os ventos desafiavam sempre qualquer oráculo para se manifestar. Apesar do avanço da ciência. Para ela, na impaciência da sua juventude, tudo era uma chatice. Nem, por um momento, lhe ocorria que era ela que tinha que se desligar dos quintais e suas proximidades, e subir ao monte mais alto para tentar apreender, para tentar conjugar a vontade dos ventos e das pessoas. Sim, porque, interiorizando bem a questão, as coisas não estavam desligadas. Muito pelo contrário.
Lúcia, após alguns conselhos de gente sabedora, verdadeira biblioteca viva da terra, subiu ao monte. Viu mais longe, isso é certo, mas nem por isso se sentiu mais apaziguada. É que, fazendo bem as contas, as batatas, as uvas, as couves, os tomates, as cerejas e outros que tais, tinham a sua razão de ser. Mas não acreditava que o João da Laurinda deixasse de andar na sua Peugeot a gasóleo, até porque isso lhe custava os olhos da cara, quanto mais um carro eléctrico, nem a empresa de autocarros, que servia a aldeia duas vezes por semana, tinha condições para aparecer de cara lavada. Custos da interioridade, diziam os políticos. Um raio que os parta, diziam os poucos sobreviventes da terra.
Lúcia desceu o monte e, ao contrário do herói bíblico, não vinha nada apaziguada. E, se revelações houvesse, apenas uma se lhe afigurava: ao contrário da Elsa, que por aqui dormia para jornadear, diariamente, até à sede do concelho, apaziguando as saudades da infância com um sentido de dever cumprido, com um ordenado confrangedor, ela iria fazer as malas para ousar enfrentar o mundo para lá do amparo dos montes maternos. Não sabia o que iria acontecer, mas luta, isso era garantido, ela iria dar. A força da interioridade assim a obrigava.
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11 comentários:

  1. Quem pensa que tudo sabe ... nada sabe. A Arrogância sempre foi contrária e inimiga da humildade. E a humildade sempre foi o princípio da sabedoria
    Gostei muito de ler este deslumbrante texto.
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    Um domingo feliz - cumprimentos
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Ver mais longe parece ser o sonho de quase todo mundo nesse momento. Para aldeões, para gente urbana. Não importa onde se vive, nem como. O que virá em seguida? (ando à procura da resposta).
    Estou feliz por ver um post novo aqui.

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  3. Digo, como o outro "só sei que nada sei" e é nesta consciência que nado, esperando que, a cada dia, saiba um pouco mais, mas longe de muito saber algum dia.

    Foi um gosto, poder voltar a lê-lo. Sabe, já sentia a sua falta :)
    Boa noite, sô AC

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  4. E muitas vezes temos cada surpresa guardada!!!!
    Abraço, boa semana

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  5. Procurar o princípio de tudo. Saber que, como dizia Torga, "só quem sobe à montanha toca o céu. Na terra chã ninguém se transfigura". Lúcia encontrará o que procura. É um gosto ler o que escreve.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  6. É pena, o Interior precisa de Lucia(s).
    ~CC~

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  7. "Cubro seus olhos, assim como também coloco em seus ouvidos conchas do mar, para proporcionar uma sensação de interioridade" _ assim o poeta descreve essa 'força' que nos faz caminhar de olhos bem abertos. Ou deveria.rs
    Assim sendo, sempre estaremos desejando a montanha mais alta ou o jardim mais verde ...o correto é a ir a luta como a sua Lúcia.
    Uma boa reflexão, AC da qual quase sempre 'penso que sei mas nada sei' rs
    fica o abraço

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  8. Antes de mais o meu sincero agradecimento pela consideração manifestada há já algum tempo, sem que, de mim, "nem água vem nem água vai".
    Li agora o trecho magnífico com que o Amigo AC nos brindou. Logo na pintura de Margarida Cepêda me questionei sobre o "princípio". Que princípio? O de partida e chegada? Como determinar isso, um ponto na translação que não seja ficcional, convencional? Também os princípios determinantes da conduta humana serão variáveis. Estamos condenados a ir adaptado normas em função do tempo e do espaço. Ninguém espere soluções providenciais, nomeadamente as sopradas pelo poder, que se sustenta na mentira permanente.
    Porém, dentro das evidências ditadas pela natureza das coisas poderemos afirmar que do cume, embora não se toque o céu, vemos mais, mas não tudo. É portanto de bom senso reconhecer que pouco ou nada sabemos.
    Abraço, Amigo AC

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  9. A arrogância do quer que seja é meio caminho andado para se estamparem e quando isso acontece aprendem a ser mais humildes. O interior até hoje é o "parente pobre" dos políticos e que ainda por cima vivem à custa do que nos gamam. Por mim falo e digo isso a muita gente: enquanto ser vivo quero aprender tudo que esteja ao meu alcance e se não estiver ponho os pés ao caminho e busco. Equilíbrio/humildade/aprendizagem/saber escutar/solidariedade num aprendizado constante é o que falta a muita gente.
    Gostei muito e a imagem está a conduzir com este teu desfiar de pensamentos tão assertivos.

    Beijocas e um beijo especial ao Miguel (não me enganei no nome pois não?)

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  10. Quem espera desespera e quem sabe faz a hora. Viver no interior entre a natureza e do que ela nos dá, às vezes não chega.
    Abraço, saúde e um bom mês de Setembro

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  11. Lúcia certamente, encontrará o seu lugar no mundo... mas a aldeia ficará com menos outra Lúcia...
    Felizmente, também se tem assistido a um movimento inverso... muito jovens da cidade, procuram um viver mais sustentável e saudável, em muitas aldeias do nosso Portugal profundo... só estamos bem onde não estamos... assim é a verdadeira natureza do ser humano... que num lado do mundo... anseia por descobrir o que se passa no outro... e adaptar-se por lá!...
    Mais um belíssimo texto, que nos faz reflectir, nesta nossa realidade... sempre tão cheia de insatisfações, a vários níveis, onde quer que estejamos...
    Um beijinho
    Ana

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