sábado, 9 de abril de 2022

ASCENSÃO

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Margarida Cepêda, Ascensão II

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Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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Olhou para cima, remirou, calculou perspectivas de ângulos e saliências e, satisfeito, fez uma última inspecção à mochila.
Começou a trepar o pequeno monte, galgando metros, enquanto contornava, com algum deleite, pedregulhos e arbustos. As giestas começavam a florir - são afrodisíacas, segredara-lhe alguém, num dia de maior intimidade - a passarada, de tão efusiva, parecia tecer louvores à vida, o corpo parecia enquadrado na empreitada. Ora vamos lá.
Continuou a subir, num misto de maravilha e determinação, sempre em crescendo, como se tudo se tornasse mais simples à medida que irrompia no templo natural. E o vislumbre, a meia encosta, duma gruta dissimulada pelos arbustos, longe de intimidar, apenas acentuou a vontade de comungar com os elementos, de dar configuração aos pequenos sinais, de se tentar integrar num todo.
Após observação cuidada, em sintonia com a linguagem do local, focou-se nalguns pormenores: no lado esquerdo cresciam três rosadas dedaleiras, qual convite agridoce, a deslumbrar, em simultâneo, os sentidos, mas com um travão bem afinado quanto à sua toxicidade; ao centro, mesmo junto da entrada, fezes dum qualquer animal (raposa? javali? coelho?) faziam antever que a gruta seria habitada; no lado direito, duma forma singela, cresciam, a custo, meia dúzia de estevas, em plena floração, atraindo algumas abelhas. Apesar de saber que os javalis não gostam de frequentar altitudes, resolveu não entrar na gruta. Estava ali de visita, o mais discreta possível, e tentar não interferir com o equilíbrio do meio era condição obrigatória. E lá foi, decidido, continuando a ascensão. 
A dada altura a inclinação suavizou, dando azo a um curto promontório onde, num recanto mais abrigado dos ventos, sobrevivia uma capela medieval que, quase miraculosamente, continuava a ostentar um relógio de sol numa das paredes. Fez uma curta pausa para apreciar a preciosidade, enquanto retirava da mochila a garrafa de água para um gole retemperador. Depois, sem pressa, prosseguiu no seu rumo.
Quando o cume, de tão próximo, já começava a estender a passadeira para o receber, sempre por entre fraguedos, um canto peculiar chamou-lhe a atenção. Era um melro-azul, muito raro naquela altitude, mas que fazia questão, era grato pensar, de lhe dar as boas vindas. E, embalado pelo canto da ave, lá encetou as últimas centenas de metros do percurso, onde o aguardava uma visão panorâmica que esgotava todos os graus da convenção matemática. Agora, lá no alto, era só ele e o universo.
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16 comentários:

  1. Evitar encontro com algum javali não é só questão de preservar o equilíbrio do ambiente... É questão de segurança, mesmo.
    Ótimo texto, traz boas lembranças de trilhas que ultimamente não têm sido possíveis, e já não é pela COVID.

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  2. Leio-te
    e de repente
    sinto
    que esse "ele"
    é um personagem do meu livro
    Ele, lá no alto
    era o último sobrevivente da humanidade...

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  3. Geniais interrogações de Sophia mas as respostas estão estampadas e com vida nas tuas palavras. Adorei como sempre. O quadro está uma pérola.
    Beijos e um bom domingo

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  4. Subir (ou descer) uma escada assim parece-me um pouco assustador. Belo texto que gostei de ler
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    Um domingo feliz … Saudações cordiais
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  5. "Agora, lá no alto, era só ele e o universo."

    Imagino-o com a alma cheia, eu que também gosto de escalar montes e dessa sensação de plenitude, de abraço cósmico, especialmente à noite...
    Fez-me lembrar um trecho de "A Mulher Adúltera" de A.Camus e um belo anoitecer no ponto mais alto do Castelo de Marvão, com uma visão panorâmica fabulosa para um cenário aparentemente adormecido, onde apenas se ouviam uns raros latidos distantes, entre sombras, e se sentia a brisa a despedir-se do dia. Tudo maravilhosamente quieto e, ainda assim, a despertar e a arrepiar os sentidos.
    Por momentos o seu texto transportou-me, perdi-me e dispersei-me no espaço e no tempo, numa memória, agora revivida...

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  6. O sonho comanda a vida.
    Abraço, boa semana

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  7. Quem ama a Natureza sabe observá-la como ninguém mais. Como se estivesse a ouvir as palavras de Sophia ou a ver uma pintura e Margarida Cepêda em cada escalada. "Só quem sobe à montanha toca o céu" já dizia Miguel Torga. Que maravilhoso texto!
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  8. uma linda imagem de de ascensão, na arte, na filosofia, no texto e no imaginário.
    Um abraço

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  9. E lá de cima deve observar-se uma vista maravilhosa! :)
    Bela ascenção!

    Beijinhos e votos de uma Boa Páscoa!

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  10. Depois de desfrutar da peculiar caminhada, deixo-te um abraço com votos de uma Páscoa feliz.

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  11. Adorei esta desintoxicante ascensão poética, muito bem complementada com a sensibilidade de Sophia!
    Cá em baixo... continuam a haver demasiados mundos ainda... que impedem que a humanidade continue a viver e a apreciar a harmonia, de um só...
    Um grande abraço, estimando que tenha passado uma excelente Páscoa, na companhia dos seus! Tudo de bom!
    Ana

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  12. Ah, Poeta ... como é bom estar no seu espaço e poder apreciar a ascensão de maneira tão bonita . Agradeço , sempre .
    Beijos ,
    Marisa

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  13. Bom dia de sábado, AC!
    Você está no meu blog Flor do Campo.
    Do alto, tudo se vê melhor.
    Bom chegar aí pico.
    Tenha um final de semana abençoado!
    Abraços fraternos

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  14. Sempre bom te ler. Saudades daqui.
    Bj

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  15. Mas que bela ascensão!
    Se não escalarmos a montanha, não saberemos o quão é bela a paisagem lá do alto.
    Gostei muito de ler.
    Brisas doces **

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