quarta-feira, 28 de setembro de 2022

SABERES EM VIAS DE EXTINÇÃO

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No vale, ainda antes de alguém acordar, espalhara-se um nevoeiro que tudo envolvia, que tudo devorava.
Quando despertaram as primeiras almas, e muitas havia que acordavam cedo, já não era possível escapar às garras do intruso. E, quase sem se darem conta, o pequeno-almoço já não sabia ao mesmo: havia algo, quase indefinível, que tolhia o movimento das pupilas gustativas.
Adriana,  imponente nos seus oitenta e muitos anos, rijos e de boa saúde, esgueirou-se por entre veredas, contrariando ideias feitas e maus olhados, e encaminhou os passos, ainda certeiros, para as courelas do Vale da Ponte, propriedade ancestral da família, onde as maçãs bravo esmofo e os figos pingo de mel já deveriam estar no ponto.
Colheu, avaliando a fruta, embalada pelo protesto de alguma passarada que via, de repente, ser-lhe interrompido o banquete, principalmente dos figos. Já a cesta estava cheia, com alguma humidade a escorrer dos frutos, quando se lhe deparou o inusitado: um raio de luz, irrompendo a névoa, parecia fixar-se, por entre as ervas secas, resquício dum verão inclemente, sobre um objecto metálico. Estacou, aproximou-se, olhou com atenção e... era a chave da loja onde costumava guardar o resultado das colheitas.
Não se benzeu, não agradeceu aos céus, não invocou qualquer crença sobrenatural. Limitou-se a sorrir, tranquila, enquanto pensava, de si para si, que a velhice tem as suas manhas, o que era preciso era saber aceitá-las. E continuava a sorrir, olhando de soslaio para a cesta, enquanto irrompia num passo suave, mas cadenciado, pelo pó do caminho, em direcção à sua casa de sempre.
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12 comentários:

  1. Oxalá nunca sejam extinguidos porque ainda é o que no faz recordar muita coisa antiga, Eu gosto de ver um bom rancho. Gostei do texto!
    Obrigada
    -
    Queria viver simplesmente na ilusão...

    Beijos
    Uma excelente semana!

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  2. Muito interessante este post.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  3. Como sempre, e daí darmos pela sua falta, cada escrito é uma tela.
    Boa noite, sô AC

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  4. Muito satisfeita em ler um post seu novamente. E, como por aqui a primavera já vem trazendo frutas (cerejas, amoras, acerolas, jabuticabas...), diria que, mesmo sem os oitenta e tantos, identifiquei-me um tanto com sua personagem.

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  5. A velhice é um privilégio negado a muitos.
    Abraço

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  6. Adorei o texto e realmente a "velhice tem as suas manhas" e felizes nas suas casas e ou terras contornam todos os obstáculos da vida, o que muitos não conseguem por vários factores como os incêndios que lhes roubam tudo até a alma! A minha neta mais nova anda num rancho de onde moram e eu só vejo quando os pais fazem um vídeo.
    Beijos e um bom dia

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  7. Que lindo e desde o início, com o nevoeiro, deu pra bem imaginar o lindo cenário, colheita e satisfação! Adorei!
    abraços, chica e é bom te ler sempre!

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  8. Tenho um gosto enorme em ler o que escreve. Já sentia a sua falta. Este texto é maravilhoso.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  9. Um texto maravilhoso, amigo. Como sempre pleno de beleza e poesia. Adorei.
    Abraço e saúde

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  10. Mais um texto delicioso, que nos deixa respirar os ares da serras, onde o tempo... não foge ao tempo... e se deixa degustar, aos ritmos de outrora...
    Um beijinho, estimando que tudo esteja bem, aí desse lado!
    Ana

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  11. Mais um Tero magnifico que me fez recordar o rancho da aldeia onde nasci.
    Por enquanto não penso em voltar, mas não esqueci os amigos.
    Um beijinho António
    Adélia

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  12. Muito bonito.
    Gosto de o ler, mas por onde anda?
    Deixo abraço e brisas doces**

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