domingo, 16 de julho de 2023

VÍNCULO

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O pai, vinculado a uma vida de coerência, apesar dos custos, mais que muitos, avisou-o:
- Podes correr por toda a terra, perceber o respirar de cada habitante, mas, na hora certa, cada ser que te rodeia, por mais insignificante, vai cobrar da tua decisão.
Por que raio se lembrava disso, quando o contrato que tanto almejara se prostrava, sorridente, a seus pés? À boleia disso mesmo, encavalitado num contrato de encher o olho, vislumbrou e fruiu geografias distantes, tentando perceber, embalado na herança paterna, o respirar local. Curiosamente, ou talvez não, ao mergulhar nas novas realidades, sentia, a pouco e pouco, que os problemas de uns eram os problemas dos outros, apesar da distância, não em quilómetros, mas em euros ou em dólares. Todos queriam, no fundo, ser felizes, apesar da diferença, essa sim, quase inultrapassável no espectro cultural.
Quando, numa viagem de circunstância, teve oportunidade de trilhar os Andes, temperada com Titicaca quanto baste, lembrou-se do pai, obrigatoriamente, pois era essa a sua viagem de sonho. E, comovido, não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. A partir dali sabia, por mais que invocasse as memórias, que as discrepâncias deste mundo estariam a seu cargo.
Engendrou, com base no engenho diplomado, soluções do agrado de quem decidia. Mas, por entre comemorações, de copo na mão, não conseguia evitar pousar o olhar nos mais simples, que continuavam a bastar-se com dois ou três animais, uma terra saturada e um artesanato ancestral, sonhando, talvez, com a grandiosidade das asas dum qualquer condor duma ordem desaparecida e que, de quando em vez, sobrevoava as escarpas da quase inacessível montanha. E, nessas alturas, sentia que algo lhe escapava, a ele, europeu de gema, apesar de, através da herança paterna, estar desperto para novas equações. Em suma, não se agradava a si próprio.
Por entre caminhos obrigatórios e outros nem tanto, à sorrelfa, foi galgando veredas fora da órbita, procurando comungar dos valores locais. E, o que apreendeu, foi determinante na forma de encarar o mundo. Atrasados, estes indígenas? Que disparate, sentia ele, tínhamos era ainda um longo caminho a percorrer numa mesa vazia, sem pretensões, em que cada um falasse, com humildade, daquilo que mais o inquietava. Caminhar, acima de tudo, de mãos dadas, sentindo que os problemas de uns, apesar da diferença cultural, eram os problemas dos outros.
O caminho não era fácil, pois sabia do riso de escárnio dos mais poderosos, sustentado em ideologias de privilégio, mas estava mais que preparado para ir à luta. Já que mais não fosse, e para além da proximidade, em eterna promessa de sublevação, com os oriundos da terra, na criação das condições para a manifestação do riso natural dos filhos, seus e dos outros, que esperava virem a dar novo rumo a este recanto, aparentemente malfadado, mas com condições únicas para, no final do dia, aconchegar uma visão de dever cumprido. Havia, pois, que deixar-lhes um legado, adornados com cantares de sentido profundo, por mais que doesse.
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8 comentários:

  1. Sob a pele das diferenças culturais, existe sempre gente, apenas gente, com muito em comum, seja nos Andes, nos Alpes, Himalaia, em qualquer montanha ou vale deste mundo. Excelente texto!

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  2. Humanos, somos seres humanos.
    Todos diferentes, todos iguais.
    Um abraço, boa semana

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  3. Visitando, vendo, lendo, ouvindo, deixando o meu aplauso e elogio. Bom gosto musical
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    Saudações cordiais. Uma semana feliz
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  4. Um magnífico texto como sempre, e neste relatas o antes e depois de uma geração e sonhar/lutar pelo que desejamos e juntas uma música sempre real que gosto muito e ainda o Zé era vivo!
    Beijos e um bom dia

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  5. Saber olhar e respeitar os outros é a grande lição deste belíssimo texto que li e reli. Ouvir Xutos é sempre excelente.
    Tudo de bom.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  6. Que vídeos tão bonitos. O primeiro porque não há quem não goste dos Xutos e é bom revê-los ainda todos juntos. O segundo por ser belo nas imagens, na música e na voz, feliz conjugação de três factores a que a flauta andina não é estranha.
    Quanto à história: aponta uma verdade que nunca será seguida senão parcialmente e é cada vez menor a preocupação com a comunidade humana em geral ou o bem dos mais desprotegidos, e que tanto poderiam ensinar. Basta ver como acontecem e são tratadas as alterações climáticas, observar a discrepância entre o que é sugerido pelos cientistas e o que se faz.
    À beira do abismo vamos dando passos em frente.

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  7. Um belo texto e um excelente vídeo! A essência do humano em toda parte persiste e resiste ao tempo no seu âmago.
    Um abraço

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  8. Magnífico texto sobre o respeito pelos outros e pelas suas diferenças.
    Também gostei do vídeo
    Uma boa semana

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