quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O REGRESSO

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À medida que o carro galgava os últimos quilómetros, sentia apoderar-se de si uma ansiedade pouco usual. Tinha saído da aldeia natal com tenra idade, e sempre procurara guardar a memória dos sítios onde crescera em feliz despreocupação. Pela sua mente desfilavam recordações e acontecimentos, resquícios de um passado quase irreal, emergindo dum tempo em que a vida se regulava pelo ciclo das estações.
Quando dobrou a grande curva da Volta, o casario, até aí escondido pelas colinas, surgiu-lhe de truz. Parou o carro e saiu lá para fora, deixando-se invadir pelo forte aroma dos pinheiros. Como em muitas outras aldeias do interior, as velhas casas de outrora foram submergidas por dezenas de vistosas vivendas, consequências do sonho emigrante, regressado ao velho torrão de origem para passar uma vida tranquila, sem mais preocupações que o cuidar da imprescindível horta. Ao centro era bem visível a altaneira torre da igreja, cujo repicar de sinos continuava a ser o marco regulador da vida daquelas gentes.
Entrou na aldeia, com o carro em marcha lenta, percorrendo a estrada que acompanhava o percurso da ribeira, vinda dos lados da Estrela. Os seus olhos indagavam velhos lugares, cenários onde, há muito tempo, um pequenote atrevido sorvia a vida num espaço resguardado pela geografia dos montes e pelas leis dos mais velhos. Passou junto à ponte medieval, cenário das primeiras tentativas de pescador, onde, toscamente munido duma linha de costura e de um alfinete a servir de anzol, tentara em vão a sua primeira captura, para gáudio dos próprios peixes. Logo a seguir surgia o lameiro, uma zona plana e ervada na margem direita da ribeira, palco de alguns conflitos, nas grandes tardes das férias grandes, entre as lavadeiras e a garotada irrequieta: aquelas porque precisavam do espaço para secar a roupa, estes porque não havia sítio mais maneirinho para a disputa de intermináveis jogos de futebol. Ao fundo via-se o açude, cujas águas represadas proporcionavam grandes banhos retemperadores nas tardes cálidas de Verão. Era ali, no Portal do Meio, que todas as gerações da aldeia aprendiam a nadar, num estilo pouco vistoso mas eficaz.
Continuou a marcha e subiu a rua que levava à igreja, que se desenhava, lá em cima, de forma opulenta. A meio da rua virou à esquerda, em direcção ao bairro onde nascera. Passou pela renascentista capela das Almas, com um amplo largo onde muitos santos foram festejados ao som da Banda Filarmónica local, e chegou ao velho fontanário da Fonte de Cima, que agora só servia para um ou outro burro se dessedentar. A rua que o vira crescer ficava logo a seguir, e decidiu deixar ali o carro.
Quando se apeou olhou em volta. Uma velha de lenço preto espreitava a uma janela, mas na rua não se via vivalma. Apenas um rafeiro curioso dava sinal de si, rosnando, desconfiado, para aquele intruso. A ruína de algumas casas era evidente, mas deixando ainda resquícios dum viver que se esvaíra demasiado depressa. Longe ia o tempo em que os dias decorriam, buliçosos, marcados pela azáfama do cultivo dos campos. Havia sempre muita terra para esgravatar, que a sobrevivência das famílias, com muitas bocas para alimentar, assim o exigia. Os mais novos começavam cedo a ajudar, e dividiam o tempo entre a escola, as brincadeiras e a iniciação à aprendizagem dos trabalhos agrícolas.
Quando chegou ao local da sua demanda, em vão procurou a casa onde nascera, onde o balcão de xisto era referência de toda a rua. Sentiu um aperto no peito, e virou costas a um mamarracho de janelas de alumínio que tinham construído no seu lugar. O encantamento tinha-se desvanecido com aquela visão. Ainda tentou preservá-lo, metendo pelo caminho do Ribeiro, cenário onde os irmãos mais velhos o tinham iniciado nos segredos das descobertas dos ninhos (Eu sei um ninho de melro! - gritou ele, na primeira descoberta) mas já não se conseguiu recompor.
Quando entrou no carro sabia que nunca mais voltaria. Já ali não pertencia. Mas iria continuar a conservar dentro de si, qual tesouro de incalculável valor, a imagem da casa de balcão de xisto com uma varanda de madeira, onde o velho Luís, ao serão, lhe contara tantas histórias de encantar.
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7 comentários:

  1. O narrador de terceira pessoa não consegue esconder o autor, a verdadeira personagem destes relatos saudosos e ternurentos. Experimentei há tempos uma desilusão parecida,em Milhazes.Mas ainda havia velhas alunas velhas da minha querida mãe e abraçaram a belinha com lágrimas nos olhos e também muita alegria. Senti-me em casa, mas não sei se voltarei...
    A sua prosa é cheia de veia telúrica e de raízes genuínas.Lê-se com muito agrado e apetece continuar.

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  2. Ibel,
    Muito mais havia para contar nesta vista, mas o texto já ia longo...
    Fica para depois.

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  3. A gente embala na tua escrita e deixa-se levar, levar, e já não quer parar.
    Gostei muito de te acompanhar no regresso à aldeia que te viu nascer.
    Um abraço

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  4. REGRESSO... mágico, Agostinho!
    A forma como as tuas palavras desenharam cenários repletos de doce e "amarga" saudade traçou o desenrolar da minha própria viagem, que parecia emalada nos lugares recônditos da memória.

    "Fiz as malas" e nas páginas empilhadas da lembrança, reabriu-se o álbum de "um passado quase irreal":
    ... Em pleno mês de Agosto, o sol quase derretia as pedras da típica calçada que acompanhavam a algazarra dos "filhos do Bento", como diziam as gentes da terra, agora mais entretidas com as novidades que os emigrantes desembalavam aqui e além.
    Os passeios matinais até à fonte eram uma deliciosa aventura! De cântaros pela mão, a garotada ria e corria à frente dos mais crescidos, como que guiada pela frescura do chafariz. Na ida, ninguém parecia importar-se com as íngremes subidas e descidas que pareciam acariciar todo aquele desalinhado frenesim. O regresso a casa, sempre mais penoso para uma criança, ficava marcado pelos salpicos de água que, quase sempre, ficavam perdidos na calçada ou nas roupas usadas e marcadas pela inocência dos mais pequenos. Poupando agora mais o fôlego, o silêncio ganhava terreno e só era vencido pelo melodioso repicar do sino da igreja, que todos ouviam de coração, até o eco se perder nas intemporais marcas do tempo ou nas águas espelhadas do Douro...

    Se muito fica por dizer... é porque há muito para lembrar (e ainda bem)!
    À terra onde outrora fui... não sei se voltarei... mas sei que o REGRESSO ao Interioridades está certo, porque também aqui, Agostinho, há alguém que nos conta "histórias" de encantar!:)
    Lindíssimo, Agostinho! Obrigada.

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  5. JB,
    Já que falas de emigrantes, recordo que há uns anos atrás a chegada dos "franceses", no mês de Agosto, era a grande pedrada no charco no viver tranquilo de centenas de aldeias. Traziam novidades e costumes adquiridos noutros lugares mais arejados, mexendo com o ramerrame conservador dos que cá viviam. Os mais velhos torciam o nariz às novidades, os mais novos não tiravam os olhos delas. E a animação da festa da aldeia era a forma encontrada pela Nartureza de tudo ficar em equilíbrio. No Verão seguinte tudo voltava ao princípio...

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  6. Sei perfeitamente do que falas e acredita que as férias de Verão, que ajudavam a matar saudades de Portugal,da família, dos amigos, eram vividas tão intensamente que as partidas eram verdadeiros tormentos! As malas, na hora da partida, pingavam recordações apenas desfeitas em tons de profunda saudade... até ao novo regresso, no próximo Verão!

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  7. E eu tenho tantas saudades da minha LUANDA. Sei que está totalmente diferente do que foi quando de lá saí há alguns anos debaixo de muito barulho, e situações que os meus seis anos não conseguiam decifrar mas que marcaram, e muito, a cara de aflição da mãe e do pai em "despachar" as filhas para a "Metrópele" para casa da avó que morava numa aldeia, entre a Serra da Gardunha e da Estrela onde tudo era diferente,o clima, pessoas idosas, tudo vestido de negro, e a maneira de falar diferente.. quando falo na maneira de falar refiro-me à educação, ao tratar por você e afins; confesso que tenho tantas, tantas saudades, mas sinceramente, a vontade de regressar tambem não puxa, por ter medo do que vou encontrar. Há muitos que voltam e já lá foram e pelo que me dizem, eu prefiro ficar com a ideia que me marcou, que apesar dos seis anos, ficou.Como a infancia até essa altura foi muito feliz, as lembranças ficaram, porque a partir daí, tudo mudou... ):

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