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Sentado em frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. E queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. E queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Este parece ser o destino do Portugal Profundo. Aridez, solidão, desertificação, morte lenta (ás vezes acelerada).
ResponderEliminarÉ este o País que os que nos governam há décadas - séculos - querem que deixemos aos vindouros que pagarão a factura com língua de palmo.
Esquece-se o Interior e investe-se em massa no Litoral a ponto deste se tornar um inferno para quem lá vive. São horas de espera em filas intermináveis de automóveis ou horas sem fim de espera por tansportes públicos atulhados de gente.
E este País é tão pequeno que algum bom senso ditaria que era possível uma melhor distribuição da população e consequentemente da riqueza produzida. Mas não. A miopia política não deixa ver além do Terreiro do paço.
Quero acreditar que o Felismino será feliz, à sua maneira. Mas poderiam ser felizes tantos outros Felisminos que passam pela Vida sem se dar conta de que ela é feita de pequenas coisas.
Todos temos a certeza que mais cedo do que tarde virá um sismo, igual ou pior que o de 1755 e é pertinente questionarmos: Quantas vidas se perderão naquela Região superpovoada? Quem pagará a reconstrução? A resposta só pode ser uma: a catástrofre trará muita dor e sofrimento e o pagante vai ser aquele que nunca usufruiu das benesses da Região rica.
A História não se repete mas há episódios que são recorrentes e nós já nos habituámos a este viver a este ritmo e sob este destino.
Não quero parecer derrotista ou invejoso. Mas que é necessário que nós, os da interioridade, façamos qualquer coisa lá isso é. Nem que seja denunciar como aqui se está a fazer. É preciso alertar toda a gente. É preciso consciencializar os desatentos.
Abraço
Caldeira
Caldeira,
ResponderEliminarNeste momento os problemas são tantos por todo o lado que dificilmente o interior entra na agenda política. E, sabes uma coisa?, há por aí tantos Felisminos!
Um abraço.
Não saberia escolher melhor linguagem, sentimento e frontalidade para "denunciar" esta realidade, e refiro-me ao teu texto, Agostinho, mas também ao que foi escrito no primeiro comentário.
ResponderEliminarSem dúvida que a ferida da desertificação humana está exposta (logo, visível a todos, não? sim visível, mas ninguém lhe deita as mãos para a curar!) e há povoações inteiras mortas ou moribundas.
Neste momento são os resistentes que continuam a sofrer essa morte lenta, mais tarde serão outros... Dignos de admiração, e firmes nas suas crenças e valores, são eles (mais prejudicados do que ninguém) os que ainda teimam dar vida à solidão que sentem, corajosamente (? ou por não terem alternativa) lutam por sobreviver, alheados do mundo, mas fiéis à sua aldeia, ao seu "interior".
Esta realidade tem de ser diferente... só agindo, a solidão será "sol de pouca dura".
Essa realidade de que fala não me é alheia. Fui conhecendo, de longe e de passagem, algumas pessoas nessas circunstâncias.
ResponderEliminarDe todas as vezes, mais do que revolta, foi pesar o que senti.
As pessoas não são iguais e não há, aqui, qualquer resquício de elitismo, é a constatação de um triste facto. É profundamente triste pensar que há pessoas, tantas pessoas, a quem a vida nunca brindou com um sorriso de ventura. Vida madrasta.
A personagem do seu texto tem um nome e ainda bem que assim é. Somos humanidade, nação, comunidade, mas, acima de tudo, individualidade.
Não há, em nós, nada de novo, mas a vida humana, a vida de cada ser humano é única e não generalizável.
JB,
ResponderEliminarA desertificação está a abrir feridas incuráveis, golpes numa certa forma de viver incompatível com a planificação dos senhores do dinheiro.
As resistências mais profundas e mais dolorosas - mas não as mais eficazes - são as dos Felisminos, irredutíveis na sua forma de viver. Até há pouco tempo o Felismino corria o risco de ser alcunhado de inimigo do progresso, mas hoje creio que não são poucos os que o consideram amigo da vida. Pode não haver esperança para ele mas, de uma outra forma (as variáveis estão sempre em mutação) talvez haja para outros.
E.A.,
ResponderEliminarA invocação da individualidade tem razão de ser. Na do Felismino ressalta a dignidade na forma como encara o seu destino, mas não podemos ignorar que ele (o seu destino) é fruto duma mutação que não contempla individualidades, mas sim números. E o resultado é o que está à vista.
Tchi, amigo, a desertificação do interior é uma dor de alma. Ainda bem que conferiste um toque de dignidade à personagem do velho Felismino.
ResponderEliminarAbraço
Jorge,
ResponderEliminarMuitas vezes é na adversidade que se vê a verdadeira dimensão das pessoas. No caso do velho Felismino, a ideia foi conferir-lhe dignidade até ao fim, agarrado a um conceito de vida que só fazia sentido daquela forma.
Um abraço.
Deixei-me para o fim e pouco tenho a acrescentar depois de comentários tão completos. Sei que dói a alma ver o país abandonado, com meia dúzia de velhos às portas, desdentados, curvados, trôpegos, tentando sobreviver enquanto o rio da vida permite. Gente só.Gente sem alento. Morte antecipada nos gestos e nos rostos, bem como a resignação.Gente sem gente, vivendo do calor terno dos animais que vão criando como podem. PORTUGAL está irremediavelmente morto nas suas raízes mais profundas e genuínas.
ResponderEliminarIndividualidade ou colectividade, gostava ainda de acrescentar que, sabendo que o Felismino representa todos os que se encontram na sua situação, a escolha do seu nome (propositada?) é bem feliz! (Felismino... "feliz menino..." é realmente o que a maioria desses idosos "meninos e meninas" respondem, quando lhes perguntamos como se sentem - e as suas palavras são dignas do seu sentir).
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