domingo, 12 de outubro de 2014

A CADEIRA

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Hélio Cunha, O anjo e a musa diante das ruínas da Europa
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Mantivera-se sempre à distância. Quando, por fim, se abeirou do cais, os barcos já enfunavam as velas, os porões prenhes de esperança. Não participara nos debates, não vira a construção das naus, não partilhara cuidados e sorrisos. Perdera o bilhete para a viagem.
Aguardou, clamoroso, de braço dado com o tempo, por sinais vindos do horizonte. Em vão. No cais, já carcomido pela ausência de sonhos, até as gaivotas pareciam reféns da velha tela perdida no sótão. Apenas a cadeira denotava algum brilho, apurado pela quente familiaridade do roçar das calças.
Quando vieram os turistas, entre algaraviares vários, ainda permitiu duas ou três fotos, mas há muito que perdera o rasto da alma. Por bom preço, acabou por vender a cadeira.
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24 comentários:

  1. Tomar decisões… uma constante da vida.

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  2. Assustei-me um tanto com o seu texto, AC, pois mantenho-me - meio sistematicamente - quase sempre à distância. Mas que eu não perca a alma! Que não percamos nunca ;)
    Abraço!

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  3. Tem uma expressão que resume tudo é o _'adeus,melro-preto'
    é assim que vamos nos desfazendo das pequenas e grandes coisas _uma incomodam e outras amarmos demais.
    belo texto AC

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  4. Pelos medos, e enredos
    vendem-se anéis, dedos
    e até símbolos
    e artefactos queridos
    como essa cadeira

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  5. É assim! Perdida a geometria dos sonhos e o tempo da viagem quase tudo +e quase nada!

    Um beijo

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  6. Pois, há muito que perdera a alma...
    Muito bonito este seu conjunto AC:)

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  7. Quando se perde a alma, o sonho... fecha-se uma porta e tenta-se abrir outra. :)

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  8. Se calhar, ao vender a cadeira, conseguiu mudar de vida. :)

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  9. Olá, AC!

    Metáfora em que muita gente se poderá rever:Não chegar a tempo ao cais de partida, ficando à espera de quem não chega ...

    Uma boa semana e um abraço amigo.
    Vitor

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  10. Olá, Ac. É possível que, mais que aguardar uma chegada vindo do horizonte, seja necessário partir ao seu encontro.Almas sem sonhos são menos úteis que a própria cadeira. Um abraço!

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  11. Se calhar revi-me nesse ficar à margem do seu conto, AC. Se calhar muito! As suas linhas são boas e certeiras :)
    Beijinhos, boa semana!

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  12. AC, é sempre um prazer ler o que escreve. Deixar que as suas palavras nos embalem. Acho que é mesmo disso que se trata, tranquilizar, passar um sensação agradável. Pelo menos é o que chega a este lado.

    Tenha uma óptima noite :)

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  13. há que erguer da cadeira e ... sujar as mãos.
    belo teu texto

    abraço

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  14. Quando a alma perde os sonhos e o corpo as viagens, teremos tombado tão apodrecidos como o cais onde nos sentávamos a espreitar lonjuras...

    Um beijo

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  15. Com as fotos foi -se a alma , quem sabe se a recupere com a venda do conforto da cadeira ?

    Um beijo AC ,
    Maria

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  16. Pelo menos fez um bom negócio!
    Belo texto, bem ao teu estilo...
    Bjs

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  17. Suas palavras sempre tao perspicazes!

    Beijos.

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  18. Há sempre uma mensagem de quem escreve e as leituras de quem lê. Insofismável! Tento sempre "meter-me" no texto; contudo, nem sempre é fácil "penetrá-lo". Ocorreu-me tanta coisa! Mas uma relevo: o receio de perder o ânimo (como sabes vem do latim animus - alma). A desistência é (a meu ver) consequência de vazios...Se já nem os artefactos prendem, que sentido dar à vida?
    Um texto intenso, encapuçado de mensagens "subversivas" . Pelo menos que se salvem as palavras!
    Bjo, AC :)

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  19. Quando se perde a esperança.... não resta mais nada... Já passei por isso...mas depois voltei a subir ao cais....
    Obrigada pela visita.
    Beijos e abraços
    Marta

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  20. AC,é sempre um enorme prazer ler seus textos,são contundentes...
    acredito que nesse caso a desesperança fez com que ele vendesse a cadeira...não a alma..
    um grd abraço amigo querido!!!!
    Zil

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  21. Gostei do texto! Perder a alma, perder a esperança, perder a coragem, perder a vontade...o reflexo dos tempos. Tristes tempos! Há que continuar no cais e continuar a viagem assim que a oportunidade aconteça. Beijo

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  22. Muito belo, o texto. A cadeira permanecia como sinal de presença. Que pena tê-la vendido...
    Um beijo.

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  23. tão triste, acho que uma certa angústia em todo o texto.
    se vendeu a cadeira assumiu o fim!
    devia conservar a cadeira!
    :)

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  24. De tanto nos mantermos à distância, acabamos sem sítio.

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