sábado, 11 de março de 2017

MUROS E QUINTAIS, SERVIÇO DE MESA COM AVENTAIS

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Fotografia de AC
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Todos os dias, apesar da pressa em satisfazer compromissos, cada vez mais sobrecarregados na exigência dos outros, há algo à flor da pele que argumenta, que questiona, que reivindica, afastando para lá a ideia do acenar submisso do autómato.
Vivemos num tempo de transição. Esbatem-se, cada vez mais, os ideais humanistas, em que o progresso deveria estar ao serviço do homem. No horizonte, assomando cada vez mais às claras, insinua-se um mundo controlado, vigiado, em que cada manifestação individual, ou social, é escrutinada ao mais ínfimo pormenor. As pessoas recebem cada vez mais brinquedos, acompanhados dum diploma de modernidade, enquanto que, em paragens "sem interesse estrutural", há quem clame por água, por pão, por um qualquer lugar onde não se oiça o sibilar das balas. No fundo, dão eles a entender, deveríamos estar contentes por vivermos para cá do muro.
Vivo, por opção, num local em que todos os dias se ouve o cantar da passarada, se vêem as plantas a crescer, se observam as estrelas no firmamento, convidando a viagens para lá de nós. E sinto-me grato por isso. Mas não, por mais que me cantem loas aos ouvidos, não vivo num mundo à parte. Gosto muito do sítio onde vivo, mas não posso esquecer, nunca, que sou parte integrante dum complexo sistema em que os verdadeiros poderes, cada vez mais na sombra e, a cada dia, mais fortes e subtis, vão muito para lá do cantinho de cada um. Estamos todos no mesmo saco, à mercê de cinzentos desígnios, mas há quem teime em dourar, a todo o custo, a pílula da existência.
Todos os dias, quando me levanto, encho a alma com o canto da passarada, mas nunca me esqueço, mesmo que em modo suave, do mundo em que vivo. Com os afectos a tiracolo, sempre.
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28 comentários:

  1. Até porque se alheados em demasia, nada conseguiremos fazer para, ao menos, tentar minimizar os males do mundo.

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  2. Há tormentos para os quais não há palavras, há oceanos de sofrimento que não podem ser esquecidos. Não podemos ficar apáticos, porque fazemos parte de um todo, mesmo quando o céu por cima das nossas cabeças é atravessado pelo canto dos pássaros.

    Um beijinho, AC

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  3. Boa peça para pôr as carolas avisadas.
    Com ou sem.
    Avental não. Impotantes são as coisas comezinhas que fazem o homem feliz. Podar, pôr as mãos negras de terra para, passado o tempo, digamos que de namoro, apanhar uma alface, uma ameixa ou um pêssego, degolar uma couve ou grelhos, passar no mercado e levar peixe, grelhá-lo... É ler ouvir música...
    Por outro lado a pílula disposta para os ratos, vírus ...
    Uma questão de escolha.
    Abraço.

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  4. Também sigo os mesmos preceitos... num mundo, até um pouco parecido... Onde adormeço com o cantar das corujas e acordo ao som dos melros...
    Adorei o texto!
    Beijinho! Bom domingo!
    Ana

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  5. Gosto desse céu onde as nuvens se afastam e abrem uma clareira...de azul esperança?!?
    Se assim for que o seja para todos e não só para alguns. É lindo acordar ao som do canto da passarada, mas sem esquecer os que não dormem em virtude do som do medo, do ensurdecedor ruído das armas, do estômago vazio e da ausência de esperança.

    Um beijinho, A.C.

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  6. As duas faces do mundo coexistem ... por melhores que sejam nossas vivências há sempre a angústia existencial que nos aflige e não há a paz perfeita.

    Um abraço

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  7. Também vivo num lugar privilegiado e dou graças por isso, mas ao virar da esquina, todos os dias dou de caras com outros mundos que doem cá dentro só de ver e ouvir. Não há como não os ver e fazer parte deles. A ciência é tentar coabitar AC, não é? Beijinhos

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  8. Às vezes invejo os que conseguem viver longe do mundo. Do cenário político. Do desconcerto do mundo. Da instabilidade do ecossistema. Das perversidades. Das futilidades.
    Invejo a ingenuidade.
    Mas é só às vezes.
    Somos do mundo!!!

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  9. Vives num paraíso
    que dizes por ti escolhido
    E dizes que tens uma janela aberta sobre o mundo, pela qual espreitas quando te levantas...
    Dizê-lo é já meio caminho andado, para o tanto que falta fazer...
    se tens porta, anda

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  10. A tua foto é linda, as tuas palavras verdadeiras e sentidas como sempre. Vivo aqui por obrigação ( o que isto era há 39 anos e no que transformaram) e com resmas de saudades do meu berço lá longe para onde iria já. Mas como diz o povo "Deus não fecha uma porta sem abrir uma janela" daí eu pular sempre que posso para um local onde se ouve a passarada e se respira ar puro numa de carregar baterias.

    Saio daqui "com uma lágrima no canto do olho" e termino com

    Um grande abraço retirado "dos afectos a tiracolo, sempre.:)

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  11. Vivo assim tbm...mata em redor,bichos passando na porta, vou trabalhar e tenho que dirigir devagar pq os esquilos estao em toda parte,vivo em um paraiso...porem... ao chegar em casa e ligar a TV, o noticiario me lembra que faço parte de um mundo que esta se desintegrando...por mais que tenhamos privilegios, nao podemos viver a parte...

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  12. Que resistam os pássaros
    de todas as cores

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  13. A foto tão bela, numa sensação do infinito (céu...)
    bem próximo...
    O texto belo também, num lembrete da lúcida leitura sobre
    "um mundo controlado" (tecnologias demais...), porém a
    comunhão, no qual somos interligados nesta grande raça
    humana. O equilíbrio neste todo e a natureza como
    a grande fonte de recarregar a energia sublime.
    Um bom domingo, AC!
    Beijo.

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  14. Um texto muito lúcido e cheio de afectos.

    Um beijinho

    O Toque do coração

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  15. Enquanto existirem pássaros a cantar, enquanto escutarem seus cantos existirá ainda uma esperança ainda que pouca, ainda que rara, de que cada vez mais gente se junte para escutar a passarada. Quem sabe não cantem também? 😊 Um beijo!

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  16. Poeta , seu texto espelha nossa angústia de cada dia .
    Obrigada por partilhá-lo .
    Beijos e boa semana .

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  17. A foto nos mostra, nuvens escuras se apoderando do céu. Na terra a tormenta se espalha, fruto da ambição, do egoísmo, da robotização do ser humano.
    Um abraço e uma boa semana

    Obrigada pelo gentil comentário no Sexta. Vindo de um mestre da escrita, deixa-me lisonjeada

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  18. Tenho a sorte de viver no meio de Macau, a cidade que verdadeiramente não dorme, mas num local muito sossegado e onde posso ouvir a passarada todos os dias.
    Muito difícil na cidade do Jogo.
    Aquele abraço, boa semana

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  19. Valha-nos este trinado matinal que me encanta, embora persista o sabor agridoce que cruza o teu texto. Magnífico, AC!
    Beijnho.

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  20. "Esbatem-se, cada vez mais, os ideais humanistas, em que o progresso deveria estar ao serviço do homem". É verdade.
    Que bom poder ir limpando a alma com o canto da passarada e das flores...
    Um belo texto, cheio de lucidez.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  21. É boa a lucidez daquilo que escreve. Sinto, também, a mesma coisa...só não sei se encontraria esta forma tão clara de juntar as palavras.
    Beijinho

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  22. No meio de todo o caos em que a humanidade está, (ainda) resta a natureza para nos fazer acreditar e nos devolver a esperança.
    Adorei este espaço, um beijinho!

    Rita,
    http://rumo-a-ti.blogspot.pt/

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  23. Olá AC!
    Será o canto dos pássaros, a razão da tua lucidez? Pode ser, não? Eu me deixo levar pela algazarra das maritacas nos meus céus, elas cantam e brincam e afinam os meus neuronios. E ficam preparados para a completa aceleração e exigência do sistema em que vivemos.

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  24. um texto onde a lucidez, ainda fala mais alto.
    gostei muito!
    ;)

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  25. Que maravilha!
    Um texto crítico e simultaneamente belíssimo!
    Beijinho com afeto ;))

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