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Na pequena aldeia já todos se tinham recolhido, fazendo contas à vida. Lá fora pareciam felizes, contentes com a sua existência - andavam, numa azáfama, a preparar a festa do padroeiro - mas recolhidos, enquanto cogitavam, um nome era transversal a todas as conversas, quase de forma inconsciente: o de João Afoito, executor da agenda do barão. Todos sabiam do seu poder, todos sentiam na pele o preço de estar de bem com ele. Servil, até à medula, para quem lhe dava ordens, transfigurava-se na sua aplicação, como se a salvação da alma dependesse da sua obediência. E, aí, era cínico, frio, alicerçado numa fidelidade canina.
João Afoito, contudo, não sentia paz. E, de quando em vez, talvez para apaziguar a consciência, convidava um ou outro peão mais influente para uma petiscada. Copo daqui, copo dali, as palavras começavam a brotar, embora comedidas. O Afoito tentava debitar insinuações de humanidade, esboçando recompensas a quem o entendesse, os peões sentiam-se protegidos por merecerem a sua atenção. A sombra, contudo, era fiel testemunha do subtil amordaçar.
Um dia, no largo da ribeira, onde todos se encontravam ao fim da tarde para dois inofensivos dedos de conversa, o Aranha, que já tinha bebido uns copos na adega do compadre, começou a questionar as amarras do barão e do capataz, o João Afoito. Silêncio. Todos ouviam, mas o olhar, não fosse interpretado como de concordância, afastava-se noutra direcção. E, quase em murmúrio, naquele dia regressaram mais cedo a casa.
O João Afoito, por beneplácito de alguma alma caridosa, depressa soube o que se passou. Ouviu, mas dele nada transpareceu.
A aldeia voltou à sua azáfama, benzida no ouvir e calar, em prol do pão de cada dia. E nem mesmo quando o Aranha, personagem bafejada pela má fortuna, apareceu afogado num poço, se atreveram a endireitar as costas. Para rematar o caso, ficaram, qual etéreo epitáfio, as palavras da Ti Ana do moleiro:
- Coitado, nunca teve sorte nenhuma.
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Há por aí muita gente parecida com o João Afoito: "Servil, até à medula, para quem lhe dava ordens, transfigurava-se na sua aplicação, como se a salvação da alma dependesse da sua obediência. E, aí, era frio, cruel, refugiando-se nos normativos"
ResponderEliminarE o Aranha logo tinha que falar...
Um excelente conto.
Beijos.
Concordo com a Graça Pires. Quantos haverá por aí como o João Afoito? A coragem para falar ainda depende do estado de sobriedade... tanto medo de falar o que nos vai na alma!
ResponderEliminarO Agostinho já tem imenso material para publicar... Aqui deixo um desafio: faça-o, pois o sucesso é garantido!
Lembrei-me do provérbio, enquadrado por José Alves Reis, em Provérbios e Ditos Populares,(1996), na área dos «Conselhos». Lê-se por lá - "Não peças a quem pediu, não sirvas a quem serviu".
ResponderEliminarSaudações
Lídia
Belo conto (na construção do texto), mas sinistro (como muito do que se refere à humanidade). Excelente trabalho, amigo!
ResponderEliminarJoão Afoito precisa mesmo é de uns dias a observar o nascer do sol 😉. Beijinhos
ResponderEliminarDeixa--me pegar numa pequena pérola que escreveste:
ResponderEliminar"A sombra, contudo, era fiel testemunha do subtil amordaçar."
Tantas coisas são caladas por medo. de castigo. De mudança. De ter falta de coragem. De descobrir em si próprio uma força que uma vez liberta não se permita jamais a voltar a ser aprisionada. O novo... tão desconhecido...
E os dias vão-se repetindo. Numa doce conformidade. Com alegrias - algumas. sonhos - muito poucos. (achei que era isto que retratava o ultimo quadro - a inocência e felicidade que não desiste mesmo face ao atroz perseguidor).
Estou a divagar... :)
Esta imagem - mais poderosa - mas tão asfixiante! (mas gosto dela... como símbolo do que escreveste é perfeita!)
Deveriam estar aqui dois comentários da Janita que, por inépcia minha, foram eliminados.
ResponderEliminarAs minhas desculpas à autora.
OI, A.C. você tem andado pelo Brasil!?
ResponderEliminarUm abraço
Pois... Por vazes mais vale estar calado... Um ensinamento que não consigo seguir infelizmente :)
ResponderEliminarEpisódios de aldeia que só quem não conhece as aldeias portuguesas não consegue perceber.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
Veja-se a subtil e vil sabedoria vergada da Ana. Daí que o moinho continuasse a fazer farinha. Quanto ao Aranha, com a ajuda do vinho, nem pó!
ResponderEliminarExcelente, AC.
Infelizmente há pessoas com medo, um medo enorme dos poderosos que não sabem respeitar os outros e muitas vezes a única maneira de sobrevivência é aceitar calados a tal da má sorte. Muito bom, AC. Obrigada. Um beijinho
ResponderEliminarEmilia
Leitura muito agradável. O mesmo para a reflexão que provoca... Para o seu conto deixar a ficção, talvez bastasse apenas trocar alguns nomes, retocar o ambiente descrito... A eternidade da opressão. Excelente texto. Abraços.
ResponderEliminarUm conto que, de ficção, não tem nada. Infelizmente...
ResponderEliminarBjinho, amigo
Uma analogia perfeita... com o clima que se vivia em Portugal nos tempos do antigo regime... quem se manifestava contra... aparecia suicidado...
ResponderEliminarHoje... talvez se passe o mesmo... de uma forma mais light... ao nível de influências... que cortam as oportunidades de alguns...
Mas a lógica de tudo isto... subsiste de um modo geral... e os que se calam por medo... lá se vão esquivando de maiores problemas... e retaliações...
Um texto brilhante, AC! Que como sempre, nos dá imenso, que pensar!
Beijinho! Bom fim de semana!
Ana
Vozes ao alto
ResponderEliminarsem muros nem amos
Abraço
A má sorte se dá a quem não tem poder... só resta o silêncio...
ResponderEliminarBeijos...
Fiquei com um nó na garganta .
ResponderEliminarAs amarras e suas consequências , aconteceram e acontecerão .
Pode não acontecer o limite que aqui é narrado , mas haverá sempre uma factura para quem se atrever a viver com as costas direitas e olhar directo .
O texto , como sempre , é óptimo .
Beijo grande , AC , e bom fim de semana ,
Maria
Esqueci ... a imagem é muito boa .
ResponderEliminarMaria
"Todos ouviam, mas o olhar, não fosse interpretado como de concordância, afastava-se noutra direcção. E, quase em murmúrio, naquele dia regressaram mais cedo a casa."
ResponderEliminarA história do pilar que sustenta todos os João Afoito, desta vida, está neste excerto do texto. Naqueles a quem o medo vence. Tivessem estes homens apoiado o Aranha, e quem sabe a história teria um final diferente.
Um abraço e bom fim de semana
As amarras que muito teimam em manter e dar aos outros e fragilizados servem de "pão para malucos".
ResponderEliminarUm abraço
acho que embora ficção, tem muito de verdade
ResponderEliminarhá muito João Afoito por aí
e aranhas também...
muito bem escrito como sempre.
boa semana.
beijinhos
:)
Tudo dito por aqui, excelente texto e concordo com a publicação.
ResponderEliminarUm beijinho