domingo, 5 de novembro de 2017

TCHUMA

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AC, Gravura rupestre (Barroca do Zêzere, Fundão)
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Tchuma, de pé naquela espécie de promontório, que irrompia cerca de dez braçadas nas águas do rio, olhava em volta. A caça tinha corrido bem aos homens. Alika, juntamente com outras mulheres do grupo, ocupava-se a raspar a gordura das peles com um biface. Lok e Kanut, a um canto, partiam pedras do rio, com precisão, para obterem algumas lascas afiadas. Estavam sempre a precisar delas. A garotada, mais abaixo, iniciava-se na pesca com uma espécie de arpão, uma simples vara com uma pedra afiada atada na ponta, soltando gritos de júbilo quando conseguiam apanhar um peixe. Os dias sorriam-lhes, sem dúvida. Naquele lugar havia muita caça, muita pesca e muitos frutos, poderiam ficar por ali algum tempo. 
Tchuma fixou-se nas águas, naquele abismo que, em simultâneo, atraía e atemorizava. Gostava de estar ali, mas sabia que, com o passar dos dias, a caça iria para longe. Embalado no som da água a correr, pôs-se de cócoras e, puxando do buril, começou a picotar a rocha, dando forma à gravura dum cavalo. Talvez, quem sabe, fosse uma forma de, quando partissem, ali continuassem a viver.
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46 comentários:

  1. Interessante teu texto, lindo...Uma viagem nos pensamentos de Tchuma e a possibilidade da arte pra sobreviver em tempos não de pesca... LEGAL! abraços, tudo de bom,chica

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    1. A vida há 10 000 atrás era bem diferente, embora certas preocupações se mantenham.

      Obrigado, Chica.

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  2. Pode bem ter sido assim. Que foto incrível!...

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    1. A (boa) opinião de uma historiadora cai sempre bem.
      Obrigado, Marta.

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  3. Poderia muito bem ter acontecido assim...poderia!
    Acho que todos nós deveríamos ir marcando a nossa passagem pela face da Terra...sem a danificar e sem ser através da procriação.
    Dizem que todos deveríamos escrever um livro, plantar uma árvore e fazer um filho...acho pouco!! :)

    Beijinhos, A.C. :)

    PS-Obrigada pelas gargalhadas que já me proporcionaste hoje. ;)


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    1. Foi um prazer interagir contigo lá no teu espaço, Janita. :)

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  4. Uns desenham e deixam arte nas pedras, outros dão-lhe vida através da palavra. Imorredouras sejam! Que pena a história ter sido decapitada aqui e ali. Mesmo assim, muitas poderão nascer. A tua é bela e natural.

    Beijinho, AC.

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    1. Teresa, aquela gravura tem milhares de anos e é um documento único. cada decapitação, por erosão dos elementos, é um pouco de nós (memórias) que se perde.

      Um beijinho :)

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  5. Não mudámos nada nós...
    Continuamos a desejar deixar marca por onde passamos.

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    1. Tens razão, Boop. Apesar do muito que caminhámos, há uma parte de nós que se mantém inalterável, por muito que a vida se contorcione.

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  6. A arte das gravuras e a das palavras!

    Bjs

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    1. A arte, talvez como tentativa de tentar entender e transformar, para melhor, o que o rodeia, sempre fez parte do percurso do ser humano.

      Um beijinho, Fá :)

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  7. Belo texto para a foto ancestral...
    Beijinho,meu amigo.

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  8. O ser humano e a sua sede de transcender a sua breve existência. Assim nascem os artistas. Não conheço essas pinturas.
    Abraço, boa semana.
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Nesse aspecto não mudámos nada. Apesar de o percurso já ser longo, continuamos com as mesmas interrogações, continuamos a não saber o que está para lá de nós.

      Um abraço, Ruthia :)

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    2. Já agora, Ruthia, acrescento algo mais: tu, calcorreadora de caminhos muitos, irias gostar do enquadramento onde está situada a gravura. De repente, ao chegarmos defronte ao rio, deparamos com uma paisagem encantadora. O rio alarga, cai em cascata e, a algumas centenas de metros para jusante, destacam-se uns rochedos que se "aventuram dentro da água. É aí que está a gravura.
      Abraço

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  9. Recuei uns milhares de anos... através das suas palavras, AC... que tão bem permitiram visualizar a cena... que bem poderá ter inspirado o desenho nas rochas...
    Como sempre, mais um trabalho de excepção, por aqui...
    Beijinho! Boa semana!
    Ana

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    1. Sempre tão generosa na apreciação, Ana.
      Obrigado, gosto muito de a ver por aqui.

      Beijinho :)

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    1. É isso mesmo, Rogério, a nossa história tem muuuuitos quilómetros de estrada. E todos eles contam, todos fazem parte do nosso ADN.

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  11. A vida é pautada por "momentos" que guardamos na memória e sinceramente as "gravuras e pegadas rupestres" não me dizem nada. Ao lado de uma "gravura numa rocha " já vi um desenho picotado de uma bicicleta e pensei apenas e tão só na evolução entre as duas e segui o meu caminho:))

    Beijocas e um bom dia

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    1. Fatyly!!!! Como não te diz nada?!?!
      ;)
      Ahahaha
      Somos história, aqui apenas de passagem, acho quase mágica a capacidade de comunicar, e dessa comunicação ter chegado aos dias de hoje.
      Muitas das coisas que produzimos são do válidas para o momento que vivemos. Mas depois há outras. Intemporais. Que perduram. Música de Beethoven, invenções de Leonardo Davinci, livros do Dostoiévski, ...
      (Não me leves a mal! ;) Na verdade sorri quando li o teu comentário, porque te reconheci nele!)

      (E desculpe Sr AC pela intromissão em comentários alheios)

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    2. Boop,
      Conheço a Fatyly, tal como tu conheces, e ambos sabemos que ela é uma pessoa generosa, disponível, solidária e... muito espontânea. Às vezes tem razão, outras não, desta vez acho que não ficou bem na fotografia. Mas, repara, na resposta foi ela mesma, é assim que ela funciona. Passei o dia a pensar na melhor resposta a dar à Fatyly, de modo que ela não ficasse melindrada, e tu, sem te dares conta, vieste resolver-me o problema. Não o diria como tu disseste, mas é isso. Fico-te, portanto, muito grato.

      Um beijinho para as duas :)

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    3. BOOP e AC

      Ó meus amigos alguma vez eu ficaria melindrada com a vossa resposta? Jamais porque aceito todas as opiniões e estas merecem a minha contra-resposta:)))

      Boop
      Claro que somos história e não ficarei cá para semente. Mas tudo que meta "pedras/pegadas/desenhos" dos "antigamente" não me dizem nada, mas os outros casos "intemporais" já me dizem muito.
      Mais, em excursões raramente vou visitar museus com "calhaus" e Conimbrida foi a minha maior decepção. Todos encantados e eu sem visualizar o que estava a ser dito e a pensar no meu calhau em forma de tartaruga, da ou na Praia Grande onde me assento sempre que vou lá e a maré está vazia! Estou de passagem e para que daqui a mil anos não encontrei ossos meus é por isso que quero ser cremada:)))
      No entanto amiga respeito a tua opinião e toma lá um abração:)

      AC
      Fizeste-me rir e lembrei uma amigo meu que morreu na maldita guerra em que me dizia: ai meninê és espontânea dimais e olha que por vezes irão cobrar:)))

      Comigo estás completamente à vontade amigo e manda bola quando não concordas e pf lê a minha resposta à Boop e digo-te com toda a minha frontalidade que realmente fico sempre mal na fotografia, excepto quando a mesma é tirada sem eu contar. E esta hem?

      Respeito igualmente a tua opinião e toma lá um abração

      A ambos e em forma de exemplo: os famosos quadros de Miró. Ai valha-me um burro aos coices...tenho mirós dos netos e filhas que valem muito mais:))) já para não falar de outras obras de outros autores.

      E agora vou ali e já venho e espero que me tenha feito entender, certo siô e siôa? Então inté:)

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    4. Ai Fatyly, Fatyly, o que é que eu hei-de fazer contigo?
      Gosto da tua espontaneidade, sempre gostarei, e aprecio muito que digas o que sintas. No entanto, e tu sabes muito bem isso, nós não somos ilhas, não podemos virar as costas aos outros: aos que nos rodeiam e aos que nos antecederam. Sem eles não estaríamos no patamar de conhecimento em que estamos, sem eles a nossa vida era autêntica tábua rasa. Terás, por acaso, a noção do quanto representa uma figura rupestre para algém que tenta perceber a História, a história de todos? Consegues perceber a preocupação de alguém que viveu num tempo em que nunca sabia se no dia seguinte haveria comida e que, mesmo assim, sentiu vontade de transmitir algo? Isso não te diz nada? Caramba, Fatyly, eu gosto muito da tua espontaneidade, mas mesmo os mais espontâneos, quando conhecedores do mundo que os rodeia, sabem que nada surge por acaso, que tudo tem uma história, que há momentos em que a humildade é a única postura possível. E uma gravura rupestre, podes crer, diz-nos muuuuuiiito do caminho que já percorremos.
      Repito-me ao dizer que gosto muito da tua espontaneidade. Mas, caramba...!

      Um beijinho, querida amiga :)

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    5. AC
      Jamais viro as costas aos outros e sempre li muito. Concordo contigo porque de facto não somos ilhas, mas o que referi sobre as figuras rupestres etc que podem e dizem muito aos historiadores...eu prefiro ler o que escrevem sobre o assunto.

      Por não sermos "ilhas" o que a ti de pode dizer muito, a mim nada me diz e jamais saber tudo, mas posso saber de coisas com milénios que tu não saibas porque não as viste. Todos os dias tento aprender e quando vejo programas "pergunta e com 4 opções de resposta" fico parva por não saberem "o óbvio".

      Na minha modéstia forma de sentir e ver as coisas, a vida seria sim uma "tábua rasa" se todos pensássemos e gostássemos das mesmas coisas. Mais para eu gostar de algo tenho de entender e se nada me transmite, amigo tenho defeitos.

      Palavras tuas:" Consegues perceber a preocupação de alguém que viveu num tempo em que nunca sabia se no dia seguinte haveria comida e que, mesmo assim, sentiu vontade de transmitir algo? Isso não te diz nada?" Sim AC diz-me muito porque senti na pele e sei de cor a cor da fome, precariedade etc, etc. Qual foi o legado? Histórias mal contadas e já não devo cá estar quando contarem a verdade!

      Gostei imenso de termos tido esta conversa, "caramba" já faltava no teu espaço este fio-condutor.

      Termino apenas com algo que já disse por ser verdade: Diz-me mais o equilíbrio de pedregulhos provocados pela natureza, de escavar a terra e ver como o mar recuou tanto, as voltas de um rio milenar etc, etc, etc.

      Vou dormir e espero que não te zangues comigo:)

      Beijocas

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    6. :))
      Fatyly, se analisares bem o que escreveste, por entre este ou aquele calhau, acabas por me dar razão. Timidamente, mas dás. Caramba, foi preciso picar-te!!! :)

      Bons sonhos e um enooorme abraço :)

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    7. Um beijo Fatyly

      (E eu adoro Miró!)

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  12. Um hábito do homem deixar a sua pegada, a sua história ao longo dos tempos. Só é pena que as pegadas de hoje sejam tão complicadas e tão nocivas para os povos vindouros. Boa noite AC

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    1. GM, as pegadas de antes eram o começo, as de hoje parecem encaminhar-nos para algo muito desagradável. Será que ainda vamos a tempo?

      Um beijinho :)

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  13. Um hábito ancestral que nos permite hoje reconstituir um passado muito longínquo.

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  14. Oi, A. C. o engenho humano sempre encontra um jeito para assinalar sua passagem pela vida...uma expressão extraordinária a arte rupestre que fez a ligação através do tempo. Magnífica foto!
    Um abraço

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    1. O ser humano, ao longo da sua história, sempre se deparou com o desconhecido. Daí o seu desassossego, a sua vontade de perceber, de "catalogar" a sua existência em algo de grandioso que pressentia, mas não entendia.

      Um abraço, Guaraciaba :)

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  15. AC, a arqueologia é uma disciplina, ou arte, ou metodologia que permite aos historiadores formados nessa matéria, de reconstituirereconstituirem a nossa vivência mais longínqua. Temo que as novas tecnologias substituam o homem pela máquina, e a essência rica de conteúdo sensitivo se perca.
    Gostei muito de ler.

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  16. Cada vez corremos mais esse risco, Sandra, que alguém apague o nosso passado para melhor nos "pastorear". Mas, acredito, há muitas pessoas por aí que, embora quase a medo, destilam lucidez. Talvez um dia, quem sabe, as boas vontades se unam...

    Um abraço :)

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  17. Excelente texto, comoveu-me ao ver a foto, porque tive o prazer de a ver pessoalmente, penso que em 2007/8, recordo que vi muitos moinhos velhos, fui almoçar ao Fundão, andei muitos km acabei por ficar na Covilhã.

    Obrigado AC, um beijinho

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  18. Não existem amanhãs sem memórias
    Abraço

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  19. Li um livro com o titulo " A Mãe Terra" em que a história é idêntica a esta, reporta-nos aos primórdios da humanidade (o modo de vida na Pré-História). Tinham vidas curtas, é verdade, mas não seriam bem mais felizes que o ser humano da era moderna? Necessitavam de muito pouco para serem felizes e nós com tanto não encontramos essa felicidade em parte alguma. Embora este registo se desvie um pouco daquilo que nos habituou, gostei muito desta história. Tenho no entanto saudades dos salgueiros ao longo do rio, dos pássaros ao fim da tarde, do aroma das roseiras bravas e das borboletas no jardim ao anoitecer :))). Um beijo AC.

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  20. Oi, AC!

    Não sei do que mais senti falta: seus escritos, sua sensibilidade, suas aulas (de Ciências à História), suas imagens!

    Sempre li(n)do!
    Beijos! =)

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  21. Olá!!!

    Se tens Facebook, queres dar a conhecer o teu blogue a mais pessoas e conhecer outras tantas, adere:

    https://www.facebook.com/groups/126383254703861/

    Beijinhos, Diana.

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  22. as marcas no tempo, para não deixar esquecer o tempo
    foto excelente
    texto original e delicioso de ler
    bom final de semana
    beijinhos
    :)

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  23. Um texto belíssimo, caro AC.
    Desde o regaço de África caminhámos por vales e montanhas até chegármos aos dias de hoje. Pelo caminho fomos deixando marcas para que os que viessem a seguir não se confundissem em equívocos entroncamentos. E rimos, amámos, sofremos, lutámos, vencemos até inventar um lar.
    Todo o ser vivo, bicho, animal e homem "marca" o seu território, erige o seu património, preserva o seu adn no seu clã, na sua geração, garantindo a sua imortalidade.
    Abraço.

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  24. O tempo é o senhor que se faz presente através de variadíssimas formas .
    Esta é uma delas e que muito " me diz ".

    Óptima e bela foto .

    Um beijo Ac ,
    Maria

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  25. Bela reconstituição dos factos!
    Adorei a foto!
    beijinho amigo

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