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Júlia Tigeleiro, É só um olhar...
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Parecia nada ter de especial, mas ninguém lhe ficava indiferente. Incisiva, sorridente, persuasiva por condição - muito mais quando acreditava convictamente naquilo que dizia, ou fazia - meneava a espessa cabeleira ondulada enquanto fazia valer o seu ponto de vista. E insistia, não desistia facilmente.
Vais ver que gostas, dizia-me ela, dando forma ao seu perfil entusiasta. E, rendido a tanta crença, lá fui.
Vais ver que gostas, dizia-me ela, dando forma ao seu perfil entusiasta. E, rendido a tanta crença, lá fui.
À primeira vista, envolvida num fato cinzento e resguardando o olhar atrás duns óculos finos e redondos, a conferencista não suscitava grande crédito. Talvez fosse preconceito meu, considerava, mas o olhar da Inês, que me era enviado embrulhado num sorriso apaziguador, continuava a garantir que valia a pena. Por fim, depois de sucinta apresentação, a suspeita lá começou a debitar palavras, que a determinada altura começaram a merecer alguma atenção.
A vida, dizia ela, não é um caminho estreito, ladeada dos arbustos de que mais gostamos, como se pudéssemos manipular tão sabedora ama. Não, a senhora em causa ultrapassa o nosso conhecimento. Podemos tentar adivinhá-la, adorná-la com toda a espécie de cultos, sentir que estamos próximos, venerá-la mesmo, mas nem mesmo assim a esquiva madame se compadece.
Até aqui tudo bem, pensei. Estava a gostar do rumo da coisa, em crescendo.
Seguimos a intuição, estudamos, tentamos desvendar os pequenos e grandes sinais, porfiamos, mas nada. A grande resposta teima em se ocultar.
Até aqui tudo bem, pensei. Estava a gostar do rumo da coisa, em crescendo.
Seguimos a intuição, estudamos, tentamos desvendar os pequenos e grandes sinais, porfiamos, mas nada. A grande resposta teima em se ocultar.
Começava-me a interessar, como se por ali houvesse preocupação em construir, não em vender.
De vez em quando, prosseguia ela, condescendemos numa pausa para viajar, para caminhar no que resta da natureza, para dançar, aqui e ali conseguimos introduzir o riso. Mas não basta.
Apurei melhor o ouvido. Será que a conferencista iria ousar debitar alguma fórmula?
A vida, meus caros, é uma constante descoberta. Em nome do conforto e da segurança deixámos que alguém se apropriasse dela, ditando regras e modos, cores e odores, a um preço módico. Mas apenas na aparência. Quase sem nos damos conta, qual menino apaziguado dos seus medos pela figura incontornável da mãe, ficámos reféns do que nos venderam, daquilo a que nos habituaram. É preciso reagir, é urgente não dar a outra face. Nós, instituição que se preocupa com o aparecimento dum novo homem, temos uma linha de atendimento que...
Afinal era mais do mesmo, uma venda ao vivo com contornos aveludados. Segredei qualquer coisa ao ouvido da mulher de farta juba, que não estranhou, levantei-me e saí.
A Inês apareceu no bar uma hora depois. Não vinha eufórica, longe disso, mas sentia-se bem. Ambos sabíamos que nos esperava uma noite regada por muitas palavras, condicionadas por uma única regra: filtradas de vazio e de fel, com muita alma e coração. Só assim, para nós, elas faziam sentido. Era a única forma que conhecíamos de tentar (re)construir a vida.
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A vida, meus caros, é uma constante descoberta. Em nome do conforto e da segurança deixámos que alguém se apropriasse dela, ditando regras e modos, cores e odores, a um preço módico. Mas apenas na aparência. Quase sem nos damos conta, qual menino apaziguado dos seus medos pela figura incontornável da mãe, ficámos reféns do que nos venderam, daquilo a que nos habituaram. É preciso reagir, é urgente não dar a outra face. Nós, instituição que se preocupa com o aparecimento dum novo homem, temos uma linha de atendimento que...
Afinal era mais do mesmo, uma venda ao vivo com contornos aveludados. Segredei qualquer coisa ao ouvido da mulher de farta juba, que não estranhou, levantei-me e saí.
A Inês apareceu no bar uma hora depois. Não vinha eufórica, longe disso, mas sentia-se bem. Ambos sabíamos que nos esperava uma noite regada por muitas palavras, condicionadas por uma única regra: filtradas de vazio e de fel, com muita alma e coração. Só assim, para nós, elas faziam sentido. Era a única forma que conhecíamos de tentar (re)construir a vida.
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Não existem fórmulas que nos ensinem a viver. Ponto final.
ResponderEliminarSó por saber isso, e tê-lo aprendido à minha custa, não tento desvendar os pequenos ou grandes sinais que ela me vai/foi dando ao longo deste caminho que nunca foi ladeado por arbustos luxuriantes.
Não sei quais foram as palavras que a Inês de farta cabeleira e prosa persuasiva, trocou com o seu interlocutor, mas eu gostei do pouco que 'ouvi' da boca da conferencista de óculos finos e redondos...:)
Gostei muito desta tua prosa, que não deixa de ter o seu quê de poesia, A.C. :)
Um forte abraço e um beijo! :)
Esqueci-me de dizer o quanto gostei desse belo olhar da Júlia Tigeleiro...Pérolas de orvalho, são como cristais!!...:)
ResponderEliminarMais do mesmo? O mundo está cheio disso.
ResponderEliminarDesculpe, mas fiquei curiosa para saber se foi um acontecimento real...
Tenha uma ótima semana!
Umas vezes acontece, outras luta-se, outras sofre-se, outras desperdiça-se miseravelmente, num contínuo cija duração nos escapa...e cada um de nós só pode falar por si, desde que de tal tenha consciência.
ResponderEliminarPara quê a angústia ou a curiosidade sobre o assunto?... Fazemos todos parte da natureza e há que pedir-lhe um pouco da sua filosofia, que a possui para quem for sensível a ela.
Belo texto, AC.
Excelente imagem.
ResponderEliminarEm relaçãp â vida tudo o que se diga não é novo nem nunca será. Ela é imprevisível.
Um abraço e bom domingo
Não há fórmulas mágicas para a vida. Ela simplesmente acontece com os seus encantos e desencantos. As alegrias enfeitam-na as tristezas reforçam-na. Em suma, não há vidas perfeitas. Friedrich Nietzsche dizia: Aquilo que não me mata só me fortalece."
ResponderEliminarJulia, a fotografia é tão bonita! Parabéns!
EliminarObrigada.
EliminarMagnifica fotografia da Julia Tigeleiro!
ResponderEliminarSe as palavras da conversa que se segue forem tão puras, sensíveis, e... (efémeras talvez) como as gotas de agua, talvez esses dois aprendam mais sobre as suas vidas e esqueçam rapidamente a conferência.
:)
A belíssima imagem da Júlia junto à sua narrativa reflexiva fez com que os olhos se sobressaíssem - quase a saírem da minha face! A vida, existem tantas teorias para ela - nós homens não cansamos de criar fórmulas , teorias, mas cada um sabe da sua - daquilo que melhor lhe serve. Beijinho nos dois Julia e AC.
ResponderEliminarO belo da vida é justamente ser a Esfinge...
ResponderEliminarum abraço
Apesar de mais do mesmo, há sempre coisas que podemos retirar e guardar em todas as palavras. A maioria não é proferida em vão, mas muitas são para nos manipular.Saber ouvir e interpretar...
ResponderEliminarBoa noite AC
Oi, AC!
ResponderEliminarSempre é um prazer ler teus escritos!
Essa essência, as imagens que cria com as palavras, algo tão incomum e belo!
A poesia vivida e sentida sem dúvida foge do lugar comum, do óbvio, do padrão, as frases feitas não conseguem exprimir!
Beijos! =)
E que belas palavras aqui ficaram para começar a semana.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
O poder das palavras é imenso. E há palavras que não pronunciamos por estarem dispersas no olhar das pessoas que habitam os declives da vida...
ResponderEliminarUm belíssimo texto.
Boa semana.
Um beijo.
Mais um excelente texto
ResponderEliminara desbravar memórias
e outros caminhos
Abraço AC
E sim a vida é um "constante descoberta" a cada dia com que ela nos presenteia!
ResponderEliminarE no fim da conferência, acredito que foi bom ouvir a Inês.
Boa semana AC e um beijinho.
Uma pessoa que se veste com um fato cinzento e se esconde trás de uns óculos finos e redondos, deixar-me-ia, admito, muito desconfortável.
ResponderEliminar(a 'sua' Inês não é ruiva e sardenta, não? É que tive uma amiga linda de morrer, chamada Inês, ruiva e muito sardenta, ambas gostávamos bastante de regar noites com muitas palavras (usando as suas próprias palavras). Isto é que foi um momento de pura nostalgia...
Aceite um beijinho, AC e tenha uma óptima noite :)
Gostei porque a meu ver há mil palavras em palestras que deveriam ser substituídas por "gestos". Mas o que ocorreu no fim no final do texto é prova disso!
ResponderEliminarNão sei se me fiz entender!
Beijocas
A começar pela fotografia arte do olhar único e
ResponderEliminarbelo da Júlia Tigeleiro. Depois a harmonia do seu
texto, nesta profundidade de dialogar com a vida,
trazer o valor de comungar com a alma em tudo, na
camada mais sublime de se sentir vivo!...
Tudo encantador, AC.
Beijo.
As senhoras de sorriso gigante e abundante melena tendem a ser muito convincentes. Mas nem todo o encanto do mundo chega para nos venderem a banha da cobra. Resta-nos o consolo do debate aceso.
ResponderEliminarAbraço, boa semana
Ruthia d'O Berço do Mundo
P.S. Que imagem perfeita essa da Júlia
E hoje em dia, o uso da palavra como forma de manipulação... intentando vender algo... é praticamente uma ciência... levada ao extremo... pois tal, pode revelar-se bastante lucrativo... um extraordinário texto, que explora muito bem, também esta vertente da palavra...
ResponderEliminarE absolutamente excepcional, a formidável imagem, que tão bem vem ilustrar o seu excelente texto, AC...
Adorei o post! Beijinho! Votos de continuação de uma excelente semana, deixando desde já os meus votos de Festas Felizes!...
Tudo de bom!
Ana
Neste momento , as palavras só me " dizem " quando acompanhadas pelo consentimento do olhar , pelo gesto das mãos e pela postura corporal .
ResponderEliminarDizer é fácil , para quem tem esse condão .
Um beijo AC e bom fim de semana ,
Maria
O poder das palavras por vezes é imprevisível.
ResponderEliminarUm texto belíssimo!
Bom fim de semana.
beijinhos
PS: a imagem está bem partilhada.
:)
Por mim adorei o caminho, só porque te levou a sair em contramão.
ResponderEliminarMagnífico, AC!
Beijinho.
Belíssima ilustração com um só olhar.
Muito bem escrito e de conteúdo sensível.
ResponderEliminarSão assim as mulheres hábeis com as palavras...
Beijo meu AC