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Fotografia de AC (2013)
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Havia um mundo para lá das luzes da avenida, recheado de sombras, onde residiam os vencidos da vida. As estatísticas mostravam-se arredias, pouco ou nada sensíveis com tal gente, que só servia para atrapalhar as contas duma qualquer folha de Excel. Mas, por mais que inventassem novas borrachas, novas formas de subtrair, aquele mundo existia, pleno de grandezas e misérias. Ali, no patamar mais baixo da existência, povoado por um batalhão de desistentes semi-adormecidos, havia corações a palpitar, gente que, nos confins da alma, teimava em sonhar com melhores dias.
Guga tentou manter-se agarrado ao sono, num exercício quotidiano esculpido na prática da sobrevivência. O despertar da grande colmeia, numa correria desenfreada, nada lhe trazia de bom, antes pelo contrário. Àquela hora nunca davam nada e, do seu rasto, ficava apenas o perturbar do parco descanso concedido pela díspar fauna noctívaga. Tentou dormitar, mas não conseguia. Levantou-se, a custo, e esgueirou-se para os lados do Dragão Vermelho, reles bar de engate a preços acessíveis. De vez em quando o pessoal da limpeza, gente do bairro, deixava-o esgueirar-se até aos sanitários, que tresandavam a urina, e por lá saciava as necessidades mais prementes do corpo. Por vezes olhava-se ao espelho, mas era raro, só o fazia quando se sentia capaz de enfrentar os seus fantasmas.
- Despacha-te, Guga, que o patrão pode aparecer por aí!
Por ali ainda tinha nome, ainda que adaptado às circunstâncias, mas só ali. Do outro, associado a outras vivências, de há muito lhe tinha ocultado o rasto, embora, quando o fundo do poço ficava mais à vista, se insinuassem as memórias. Saiu, com um aceno, o pessoal dali nada mais lhe exigia. Sabiam bem que, na vida, há um limiar que a todos pode driblar.
Ao fim da tarde, quando a roda da vida parece endoidecer, Guga começou a estranhar. O movimento era o de sempre, gente apressada por todo o lado, mas naquela tarde havia algo diferente, como se a pressa ganhasse contornos de vida, para lá dos gestos mecânicos. Continuava a haver pressa, mas esta era diferente. Talvez fosse a expressão dos rostos, talvez os gestos mais soltos, como que alheados das grilhetas, talvez fosse tudo isso ou qualquer outra coisa que lhe escapava. O certo é que, apesar de apressadas, as pessoas pareciam transportar algo de precioso dentro de si. Até as moedas, habitualmente escassas, pingavam na sua caixa com outra intensidade.
As ruas foram ficando vazias, mas mesmo os mais retardatários transportavam aquele estranho brilho nos olhos, como se, de repente, descobrissem na sua vida algo que valesse a pena. Guga estranhava, mas não entranhava. E, às tantas, com a rua às moscas, levantou-se do seu poiso diurno, passou pelas traseiras do Clementina, onde uma empregada, de modo furtivo, lhe costumava dar umas bifanas, e dirigiu-se, sem qualquer pressa, para o beco onde, por entre cartões, sacos de plástico e um ou outro cobertor, aconchegava a sua solidão.
Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores, lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se, de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
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Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores, lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se, de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
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Este post está de tirar o fôlego. Não sou de dar asas às emoções, mas...
ResponderEliminarLindo presépio na foto - imagem e texto têm um vínculo incrível.
Impressionante belo! Lindo,tocante...E fez-se o Natal pra Guga!!!beijos,tudo de bom,chica
ResponderEliminarObrigada, AC...por seres o único que, nestes contos, textos, poemas e imagens que abundam na blogosfera, a lembrar-nos que estamos na época natalícia, ousou falar nesses seres que habitam no patamar mais baixo desta pirâmide existencial, mas em cujos corações palpitam ainda sonhos de dias melhores...Afinal, um elo de ligação que une toda, ou quase toda, a Humanidade.
ResponderEliminarQue todos os Gugas do mundo, nunca deixem de sonhar e se encher de ternura, com o nascimento de uma ninhada de gatinhos...
Um grande e grato abraço, A.C.
Beijinhos.
Sabe, há muito o Natal me diz pouco, é que os Gugas estão por aí o ano todo, e parecem ser invisíveis , talvez por isso estranhem mas não entranhem. Que nunca os Gugas percam os sonhos, e os cegos de coração passem a ver, mais do que olhar. Obrigada em nome dos Gugas.
ResponderEliminarMelhor vida , se possível , e não apenas no Natal , para todos os os " invisíveis " que nos circundam .
ResponderEliminarA foto é linda !
Um forte abraço AC ,
Maria
Não consigo comentar e digo apenas que és um grande ser humano.
ResponderEliminarBeijos
Uma verdadeira ternura, uma maravilha de texto.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
Um texto que sensibiliza e inquieta. Há muitas pessoas para quem a vida é sempre cruel. Talvez possamos alimentar o sonho de um mundo melhor, mais fraterno, menos desigual...
ResponderEliminarQue neste Natal haja motivos de esperança. Que o novo ano lhe traga tudo o que mais deseja.
Um beijo.
Tantos Gugas por aí, tão mais dignos de viver vidas... Que bom que nos lembras-te deles. Esta altura é tão nostalgica.
ResponderEliminarAbraço AC
Lindo! Muito bem contado.
ResponderEliminarLindo presépio da foto.
Votos de um Santo e Feliz Natal e óptimo Ano Novo!
Bjos
Foi no meio do maior infortúnio... que teve origem o acontecimento, que hoje celebramos como Natal... pelo que foi muito tocante, e autêntica, esta versão de Natal... através dos olhos de um personagem... igualmente menos bafejado pela sorte...
ResponderEliminarAdorei cada palavra, AC! Beijinho! Votos de Festas Felizes, para si e todos os seus!
Tudo de bom!
Ana
Bem gostaria de escrever um comentário à altura deste seu texto, só que é impossível. É um dos melhores textos que li ultimamente neste seu caderno virtual aberto aos que gostam de ler. Eu gosto. E gostei francamente de ter ganhado tempo com o tempo que muitos teimam em dizer que perderam. Sem mais nada para escrever, desejo-lhe um excelente Natal. Ao 'Guga' também, já agora.
ResponderEliminarBeijinho, AC, obrigada :)
PS: A foto com o presépio em modo rústico é deliciosa. Lá está, o menos é quase sempre mais.
Excelente uma vez mais
ResponderEliminarTudo pelo melhor
Abraço amigo
Oi, AC, hoje passo para desejar boas festas, agradecer as partilhas do ano, desejo grande 2018, com muitas alegrias! Grande abraço, tudo de bom!
ResponderEliminarBelíssimo e humano conto de Natal, AC!
ResponderEliminarDeixo o meu carinho nos votos de um
Natal abençoado junto com a sua família
e 2018 repleto de sonhos e realizações!
Agradeço a oportunidade de leituras
preciosas aqui no seu espaço e também
as suas leituras atenciosas no meu espaço.
Beijo e Abraço de Paz, caro AC.
Mr. Probz - Nothing Really Mattersdownload
ResponderEliminarSanto e feliz Natal para si e sua família
ResponderEliminarAG
Amigo AC, não seremos todos nós, em algum momento da vida, invisíveis? Mas enfim, ao menos há um tecto sobre a nossa cabeça. Que os sonhos se multipliquem para todos os invisíveis do mundo.
ResponderEliminarAbraço fraterno com votos de um Feliz Natal, com a simplicidade e generosidade desse presépio.
Ruthia d'O Berço do Mundo
Lindo demais!
ResponderEliminarFeliz e santo Natal e Ano Novo a você e seus familiares!
Beijo carinhoso!
Não sei que fiz ao comentário que já deixei, mas ainda me lembro bem do teu texto. Bom sinal, não?
ResponderEliminarDizia eu que presépio e texto são duros e ternos. Formulo votos para que todos e cada um encontrem sinais de carinho e humanidade no novo ano que se aproxima.
E para ti, caro amigo AC,
vai um grande abraço de Boas Festas.
Um abraço forte e que o natal aconteça a cada amanhecer.
ResponderEliminarPoeta , afirmarei sempre que seus textos são belos presentes que nos oferece . Obrigada . Aproveito para desejar a você e família um abençoado Natal. Beijos
ResponderEliminarLindo e envolvente conto.
ResponderEliminarBoas Festas e um Ano Novo repleto de saúde, alegria, sonhos realizados, paz e amor.
Beijinhos
Maria de
Divagar Sobre Tudo um Pouco
É com a lágrimita a cair que li e reli! Lindo demais.
ResponderEliminarFeliz Natal com muita saúde e harmonia para ti e aqueles que te são queridos. E já agora ao Guga.
Beijinho com muito carinho meu amigo.
Feliz Natal, A.C.
ResponderEliminarBeijinho :)
É sempre um prazer ler o escreve, AC.
ResponderEliminarAgradeço e retribuo os votos de Boas Festas.
Abraço
Que bonito conto de Natal, AC. Bom seria que o brilho dos olhares que Guga foi avistando naquele noite diferente, se conseguisse manter todas as noites.
ResponderEliminarContinuação de Boas Festas.
Belo final de ano pra ti.
ResponderEliminarUm grande abraço.
AC
ResponderEliminaremocionante conto, que me fez ficar nostálgica.
aproveito para desejar um bom ano cheio de saúde e paz.
beijinhos
:)
Feliz 2018, AC! Com saúde, afectos, bons momentos, e muitos projectos e realizações pessoais/profissionais!
ResponderEliminarTudo de bom! Beijinho
Ana
Por incrível que nos pareça, há gente que perdeu o calendário de vez. E outra há que tendo-o folheia-o no desespero da espera, que uma migalha lhe caia do Céu.
ResponderEliminarÉ um dia que tem dia e noite mas em que o milagre divino não apaga a agruras de todos os dias.
Gostei do conto. Muito, e está pessimamente bem escrito.
Continuacao de boas festas, Amigo AC. Saúde e alegria para viver cada dia que houver.
Boa noite, caro AC, o inteligente estupor é um perigo. Como foi parar ao comentário o vocábulo "pessimamente".
EliminarAgradeço a preocupação expressa, de que me apercebi agora.
A "coisa" está controlada, porém, a mocada no ânimo foi forte. Aprende-se a viver devagar, sem grandes expectativas. Mas ainda não me convenci.
Prometo pôr em dia a leitura destas crónicas. Elas têm para mim um sabor especial, entranhado de natureza, de interior_idades, de maturidade.
Entretanto, amanhã, abro a gaveta e edito umas linhas que repousam na gaveta.
Abraço.
Pois, mais um Natal passado, mais um ano quase a terminar.
ResponderEliminarDesculpe o meu silêncio, mas esta época festiva não me trás grande alegria. Mas não deixo de vir aqui desejar-lhe de coração cheio, um ano vindouro recheado de propriedade e de tudo o que a vida tem de bom a proporcionar a quem tem sempre uma mão aberta e generosa para com ela.
Bem haja AC.
Beijinho com muita estima e amizade.
Sandra
Poeta , hoje passo para desejar a você e família um 2018 com saúde , paz , amor , sucesso e muita poesia . Beijos
ResponderEliminarNa impossibilidade de o ter feito antes, desejo que a quadra natalícia tenha sido vivida em plenitude pessoal e familiar e que o eco das Boas Festas se faça sentir no hoje e sempre. Formulo, agora, os meus sinceros votos para que o ano de 2018 se cumpra em conformidade com os teus desejos.
ResponderEliminarCom afeto, deixo um bjinho
(Saudade de ler a tua superior escrita...)
Passando para lhe desejar um feliz ano novo. De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro, que sejam 365 dias de saúde alegria paz e amor.
ResponderEliminarAbraço amigo
Tchim-Tchim!!
ResponderEliminarBom Ano 2018, A.C. :)
Um abraço.
Sim...tenho tido dificuldades para comentar...
ResponderEliminarAC, belo relato.
Que 2018 traga a realização de sonhos!
Muita saúde!
Beijo