domingo, 7 de junho de 2020

ACERCA DO (IN)COMPREENSÍVEL MAU HUMOR DOS DEUSES

.
Foto (por trás da vidraça) de AC
.
.
Era domingo, dia de pausa, com "o pequeno paraíso" a servir de ponto de encontro entre pessoas que se querem bem. Desta vez, como se tal fosse necessário, o pretexto era uma sardinhada acompanhada com todos os matadores: pimentos assados, batata nova cozida com casca, salada de tomate e salada de alface. Para bebericar, em opção quase unânime, optou-se por um bom vinho do Douro.
Depois do repasto, como seria de esperar, a conversa ficou animada. De repente...
Nas telhas ouve-se um barulho assustador, colocando as conversas em suspenso. Vinda do nada, e numa cadência avassaladora, a tempestade irrompe como dona e senhora de tudo o que abrange, disparando, como dardos, mortíferas pedras de granizo que devastam tudo o que tocam.
Olho, impotente, através da vidraça. A horta, qual inocente vítima apanhada em local errado, é vergastada sem dó nem piedade. E eu, cuidador e guardião de cada uma daquelas plantas, sinto, até às entranhas, o sentido da palavra impotência. E dói...
Passada a tempestade - no dia seguinte ainda havia gelo no terreno - uma rápida surtida para comprovar o que se temia: exceptuando as cebolas, as cenouras e o alho francês, por razões óbvias, a horta praticamente desaparecera. E isto para não falar da fruta, quase toda no chão, com a sobrevivente a apresentar lacerações irreparáveis.
Os dias que se seguiram foram de comiseração, dum quase abandono da empreitada. Repararam-se alguns canteiros, tentaram-se tratar algumas feridas do pouco que restara, enquanto se lamentava o  mau desígnio dos deuses. Mas a Natureza é assim. Dá e tira, reagindo a maus tratos, indiferente a especulações de seres ínfimos e substituíveis.
Mas havia que reagir. O ser humano é o que é, imperfeito na sua elaboração, com laivos de ostentação, mas há coisas que, nestas alturas, vindas não se sabe de onde, assomam à tona d'água: a abnegação, a resiliência, a eterna vontade de recomeçar.
Nos últimos dias a horta voltou a ser repovoada de tomateiros, couves, alfaces e ervas aromáticas. Apenas. De fora ficaram os melões, o feijão, os pepinos, os pimentos, as abóboras e as curgetes. Não é a mesma coisa, que cada história deixa a sua marca, mas é um recomeço. E eu, lentamente, começo outra vez a abraçar aquelas plantas, eterno elo de ligação com os humores, por vezes incompreensíveis, da Natureza.
.
.

19 comentários:

  1. Em pleno desnorte, ainda te lembraste de fotografar a queda de granizo.
    Eu, aterrorizada com o ribombar dos trovões e o barulho das 'pedras' a baterem nas vidraças, nem disso me lembrei.

    Felizmente, depois da mais dura tempestade, vem sempre a bonança aliada à férrea determinação de tudo recomeçar.

    É esse o milagre dos deuses menores...A sua força de vontade!

    Um abraço, AC.
    Força! :)


    ResponderEliminar
  2. Há dias em que o diabo parece andar à solta.

    Há beleza em cada recomeço, mas ela não limpa o triste final do anterior, apenas se aceita porque não temos outra escolha, porque parar é morrer.

    Boa tarde, sô AC

    ResponderEliminar
  3. Pois, como o bolero "Começaria tudo outra vez, se preciso fosse , meu amor", se vê que depois das "comiserações" a horta já mostra uma cara nova... E volta a placidez a reinar no pedaço de terra...
    Um abraço, caro AC

    ResponderEliminar
  4. Oh! Os deuses devem andar loucos... Dói ver uma coisa que cuidamos com tanto trabalho e carinho ser assim destruída num momento. Mas que bom AC que a resiliência tomou conta de ti e retomaste as investidas. Assim é quando se é grande, nunca se perde a vontade e a esperança.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  5. Já tive um jardim bastante danificado por uma dessas tempestades de granizo. E, claro, foi preciso recomeçar. Não será assim, também, na sociedade, depois de uma catástrofe como a deste ano?

    ResponderEliminar
  6. Granizo e vírus
    Vírus e granizos
    Na sexta-feira
    ouvi, à tardinha
    angústias da Cooperativa
    Agrícola de Sintra
    (milhares de produtores sem escoar produto...)

    ResponderEliminar
  7. Por aqui têm estado furiosos.
    Livra, já chateia.
    Aquele abraço, boa semana

    ResponderEliminar
  8. Há uns dois ou três meses vi a notícia de alguns agricultores deitarem fora resmas de frutas e hortícolas por protesto ou falta de escoamento. Pensei...tivesse eu uma carrinha que haveria de ir buscar para dar a quem tem fome.

    Depois vi este cenário e ironicamente os dois senhores mostraram os estragos que relatas e liguei de imediato à notícia anterior. Será que a natureza se vingou? Algo estranho mas quando ela se zanga para igualmente o justo pelo pecador.
    Mas quem gosta da terra e dela colher o seu sustento jamais baixa os braços...excepto os que se encostam na enxada à espera de subsídios.

    Força rapaz e terás em dobro:)

    Beijos e gostei da simplicidade deste teu texto de um flagelo que se abateu.

    Bom dia

    ResponderEliminar
  9. Lamento...
    Já me tinha lembrado do AC quando ouvi falar das saraivadas..., e das cerejas..., porque os "personagens virtuais" não deixam de nos acompanhar...
    Que se reconstrua o possível!

    ResponderEliminar
  10. Mas que deu uma bela história e uma bela foto, deu!
    De facto, a Natureza pode ser imprevisível, por vezes castigadora, ou uma maneira da fazer recolher-se ao interior, à pequenez do que somos.

    Boa semana!
    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  11. Sim, às vezes os deuses parecem estar loucos… Foi pena a sua horta, mas imagino que já está a ficar bonita outra vez. E eu que já estava a saborear a sua sardinhada…
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  12. Poeta , descrição sensível e precisa do milagre dos recomeços .
    Obrigada , sempre .
    Beijos

    ResponderEliminar
  13. Ouvi falar nesta tempestade que se abateu a pouca distância do meu habitat. Oh! sei do desvelo com que tratas a tua horta, qual musa inspiradora. O desaire não te demoveu de continuares a semear poesia. Teu texto é uma mescla de dor e motivação.

    Um beijo, caro amigo AC.

    ResponderEliminar
  14. Tenho visto isso todos os anos aqui no Brasil, dá uma dó, uma pena... depois de tudo prontinho, esperando a hora da colheita, vem uma "bomba d'água" como chamamos aqui e leva tudo para desespero dos agricultores. É dolorido, sim, mas mãos à obra que a próxima colheita será linda. Onde colocamos amor, tudo se ergue.
    beijo, muita saúde e paz.

    ResponderEliminar
  15. La naturaleza es así, aveces solo quedan destrozos de lo que fuera productivo huerto..... Saludos.

    ResponderEliminar
  16. Saludos
    comprendo esa desazón, me crié en el campo y vi de niña como las anegas se llevaban animales y árboles río abajo por las lluvias y que decir de los huertos...
    Pero la naturaleza es así, de pronto impredecible , y con estos cambios que sufre en este tiempo sabemos que vendrán años más complejos...
    Pero como toda fortaleza el ser humano se vuelve a levantar y trabajar en lo suyo.

    ResponderEliminar
  17. A natureza tem destas coisas. Vi na TV as quintas, e as vinhas tudo destruído. Uma dor de alma.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

    ResponderEliminar
  18. Os deuses... parece que querem deixar-nos loucos este ano... ou talvez mais do que o habitual, com toda a sucessão de acontecimentos e contrariedades que 2020 nos tem sido tão generoso em proporcionar...
    Tinha ouvido esta notícia nos telejornais... mas ainda não tinha tido a noção de que precisamente por aí, tinha feito um estrago tão grande!...
    Lamento imenso, AC! Mas é com profundo alívio que constato, que já houve coragem para recomeçar tudo... e essa parece ser a grande lição de 2020... saber adaptar-nos a quaisquer circunstâncias... e... recomeçar... algo que a natureza faz ciclicamente... mas que nem sempre nos lembramos de tal... pois temos tendência para persistir na ideia fixa, de que tudo é dado como certo e garantido...
    Mas como depois da tempestade, vem a bonança... há que esperar, que o resto do ano, possa ainda proporcionar bons resultados na horta...
    Toca a arregaçar as mangas!...
    Beijinho! Bom domingo! E bom descanso, que esse trabalho ligado à terra, sempre nos proporciona cá por dentro...
    Ana

    ResponderEliminar
  19. Ah e eu sempre a pensar nessa horta cheia de aromas e cheirinho de terra cultivada.A Natureza é pródiga em oferecer e a ensinar.
    E, naturalmente,voltas a ter aquele trabalhinho em recomeçar, e a inspiração para seus poemas, é a boa recompensa.
    meu abraço,AC

    ResponderEliminar