segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

PARA LÁ DOS CARNAVAIS

.

AC
.
.
O dia decorre cinzento, pouco apelativo, como que a ilustrar as notícias que chegam do mundo.
Contudo, quem está minimamente atento sabe que para o emissor a desgraça é que se propaga, qual fogo em terreno seco, em detrimento do gesto benigno, fazendo subir audiências. E a multidão, refém duma lógica pastoral, manipuladora do rebanho, devora a mensagem sem qualquer sentido crítico.
Como que a querer contrariar maus presságios, vislumbro lá fora, através da vidraça, um casal de pintassilgos a debicar aqui, a debicar ali, com toda a delicadeza, fora do raio de acção doutro casal, mas de melros, cuja envergadura, muito mais desenvolvida, aconselha afastamento aos pesos pluma. Os pardais, como sempre, são omnipresentes, como se fossem donos do território, e nem os gatos que por aqui deambulam os conseguem incomodar. Uma aproximação, um voo lesto, cada um sabendo ocupar o seu lugar, com os pequenos felinos a desenvolver, agora e sempre, o culto da resignação.
Saio de casa. Os pintassilgos e os melros esgueiram-se num ápice, mas os pardais, confiantes, ficam por perto. Em volta a vizinhança anda muito ocupada na lavra dos terrenos, prenúncio das sementeiras primaveris que se aproximam. À medida que lavram, num sempiterno ritual, a passarada acompanha o compasso, sempre à retaguarda, atenta a toda e qualquer lagarta colocada a descoberto, banqueteando-se sem qualquer sentimento de culpa. Isso é para os bípedes falantes.
Cinjo-me ao meu pequeno paraíso, repleto de ervas silvestres, onde as margaridas são rainhas. Reparo nas amendoeiras, cada vez mais adornadas de flores, enquanto o damasqueiro, mais dorminhoco, começa a insinuar um tom róseo, procurando imitar os marmeleiros japoneses que, mais junto da casa, há muito alegram o local. Com maior avanço seguem as nespereiras, com o fruto já na infância, aguardando por dias de mais sol para melhor se desenvolver. As outras árvores - macieiras, pereiras, cerejeiras... - sem pressa no parto, reservam-se, pacientemente, para o seu tempo de esplendor, enquanto uma ou outra ave lhes vai enfeitando, por breves momentos, os ramos nus.
Lá no alto, planando sem pressa, as aves de rapina - um ou outro milhafre, quiçá um açor, ou um bufo, talvez uma águia - aguardam pela melhor oportunidade para deitar as garras à cobiçada presa, reservando o uso do bico para quando estiverem instaladas no ninho.
Caminho, olho, absorvo. Quando, por fim, e já de alma saciada, retomo o caminho de casa, ouvir uma boa música apenas serve para complementar o efeito. Ligar a televisão é, naturalmente, a última das minhas prioridades.
.
.

14 comentários:

  1. Um texto naturalmente belo! Obrigada pela partilha!!
    .
    Confesso, que não gosto, não. Feliz Carnaval...
    .
    Beijo, e uma excelente semana.

    ResponderEliminar
  2. Um excelente texto ilustrado com duas belas imagens. Na segunda foto, as pequeninas flores brancas juncam o chão dando-lhe a aparência da neve.
    Abraço, saúde e bom Carnaval

    ResponderEliminar
  3. Ah, o texto é tão bom que a gente vai visualizando tudo enquanto a leitura segue, trazendo um pouco de paz, já que os dias andam muito agitados neste nosso planeta.
    Obrigada por esse instante de calma, tenha uma ótima semana!

    ResponderEliminar
  4. Eu nunca liguei puto ao Carnaval.
    E continua a ser assim.
    Não é mesmo a minha praia.
    Abraço

    ResponderEliminar
  5. Ai AC obrigada amigo pelo momento de paz e esperança que este teu texto me causou! Também tenho a televisão está desligada porque estou farta de tanta porcaria sonora.
    O teu cantinho está tão bonito e bem cuidado, adorei!
    Beijos e um bom dia

    ResponderEliminar
  6. Consigo absorver essa caminhada e faz-me bem como se tivesse ido também.
    ~CC~

    ResponderEliminar
  7. Em Jovem gostava do Carnaval embora não fosse um apaixonado. Hoje nem tanto. Já passou.
    .
    Saudações poéticas e cordiais
    .

    ResponderEliminar
  8. Bem, fomos todos a passeio pelo campo. O seu campo, quero dizer. De variadas árvores de fruto, lestos e vários pássaros, gatos resignados e decerto elegantes no andar, vizinhos que labutam pela vida que a terra promete. E pó, o pó de revirar a terra, de feri-la sem mal, a renovar-lhe o sangue na purga primaveril, deixando à esparavela minhocas e outros vermes que olhos de pássaro não descuram. Mas no seu quintal há o perfume acre das ervas que se desdobram em flores pequenas, tapetes tão bonitos como os vestidos que inventava para a gata borralheira ir dançar a bailes onde havia de perder um sapato. Que imaginava quem tal ouvia?

    ResponderEliminar
  9. Tão belo e telúrico este seu texto. Posso ver os pardais à espero que o arado lhes mostre as minhocas. Posso ouvir os melros. Sinto o aromas das flores que vão aparecendo nas árvores como se a própria Natureza lhes lembrasse a hora. Que milagre, a vida!
    Tudo de bom para si.

    ResponderEliminar
  10. Muito belo o seu texto, consegui caminhar consigo nessa paz que por aí vive, no fim fiquei no campo das margaridas a sentir o seu aroma. Tenho saudades do campo, cresci nele, depois a vida encaminhou-me para uma grande cidade. Aqui não temos esse espaço abençoado a não ser em imaginação. Concordo consigo ligar a televisão não é uma prioridade.
    Continuação de boa semana

    ResponderEliminar
  11. Não ligo ao carnaval, mas gostei da reflexão que o texto nos trás!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

    ResponderEliminar
  12. Amei ler!
    É bom estar "inteiro" na vida! Abraços!

    ResponderEliminar
  13. Aqui as aves de rapina com que mais nos cruzamos são os peneireiros... que por vezes, lá descobrem um dos ninhos de melros do jardim... :-(
    Que maravilha de texto, AC! Confesso que estes tempos de Carnaval, nunca me disseram nada, nem mesmo nos tempos de juventude... e então nas escolas, estavam sempre associadas aos famosos saquinhos de água com farinha, ou ovos... calculo que estas tradições ainda hoje se mantenham... :-))
    Sempre um prazer imenso, vir respirar por aqui, estes ares puros do campo... para mais com o eminente despertar de uma Primavera a começar...
    Beijinhos! Bom final de domingo e votos de uma excelente semana!
    Ana

    ResponderEliminar
  14. E que importância tem a televisão para quem tem disponível tão belas imagens da natureza?

    ResponderEliminar