sábado, 11 de março de 2023

LAUROS, MELROS E EQUILÍBRIOS

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Foi na manhã deste sábado, mas poderia ser a qualquer hora dum dia qualquer. Aproveitando a folga dada pela chuva - deveria chover mais, era bom para todos, penso para mim, apesar de, incoerente com o pensamento,  me animar com o sol que espreita - fui lá para fora podar a sebe de lauros que contracena com os dois portões da entrada, com a noção de que já era mais que tempo, pois  estas plantas, se houver qualquer descuido, tendem a crescer desmesuradamente. Até aos 12 metros, informa-me o Google.
O trabalho, ou melhor, o prazer de andar ao ar livre, sem restrições, absorvendo as múltiplas formas de vida, de forma natural e com isenção de formatações - a cada dia que passa, e num agradável aviso pré-primaveril, o chilreio da passarada, com novas espécies migradoras à compita, está mais diversificada, as abelhas e as borboletas, numa azáfama constante, estão cada vez mais presentes, as árvores começam a dar sinais de despertar, num perpétuo ciclo em constante equilíbrio - prosseguia em bom ritmo, de alma lavada, sem questões existenciais, numa progressão de baixo para cima. Às tantas, e chegado a um patamar em que a altura dos lauros já aconselhava um corte radical, não fossem eles escarnecer do estado de crescimento dos seus pares, já devidamente podados, deparo-me com um ninho de melro. A situação não me era desconhecida e, a fim de contrariar o acontecido há dois anos, interrompo de imediato a faina, com o prazer a esfumar-se, ou antes, a ter que ser reformulado. E, apesar da sensação de templo profanado a pairar no ar, ousei ir a casa em busca da máquina fotográfica para registar o momento. Com cuidado, muito cuidado, subi três degraus do escadote e preparei-me para o registo da imagem. Mas o sentimento de culpa, essa herança judaico-cristã que nos acompanha de braço dado, com garras profundas, não me permitiu captar o momento com a atenção desejável. E, quase a medo, lá despachei o clique, com receio de que a casa alheia, sabiamente tecida, fosse rejeitada pelos seus habitantes, atendendo à sua vulnerabilidade, apesar de, desta vez, ela continuar bem camuflada.
Com a preocupação de nada, ou pouco, incomodar, e só com uma apressada tentativa, pouco de acordo com os cânones, a fotografia ficou má, é um facto, e quase me regozijo por isso, qual acto de penitência pelo meu descuido no afã da arte de bem podar. Talvez, e fico a torcer muito por isso, o casal de melros continue a sentir-se em segurança, apesar da intrusão do podador. Era sinal de que, a pouco e pouco, e apesar dos meus percalços, vou conseguindo equilibrar-me com o que me rodeia, no mundo natural, com o menor impacto possível. 
Regresso a casa, devagar, com o escadote numa mão e a tesoura e o serrote na outra, num agridoce debate de sentimentos. De repente, como se os deuses me escolhessem para diversão, oiço à distância  o delicado canto do casal de pintassilgos que, de há uns tempos a esta parte, por aqui aportou. Estaco e, quase sem me dar conta, esboço um sorriso perante tal dádiva. É o suficiente para o meu sol interior começar a brilhar, sem restrições.
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9 comentários:

  1. Nice blog.
    https://www.melodyjacob.com/2023/03/how-i-spent-international-womens-day.html

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  2. Se não voltar lá perto decerto vão sossegar e não abandonar o ninho.
    Abraço, saúde e bom domingo

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  3. Em se tratando de fotografia de natureza, a gente faz primeiro a imagem possível e, depois, se conseguirmos, a foto perfeita. A sua ficou ótima, porque registra o inesperado.

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  4. A alma se compraz com o renascer da vida...saber de sua constância acalma o coração. os pássaros dão o tom da primavera.Eu me lembrei da outra primavera e o cuidado com que você cuidou da conservação do ninho. Penso que os pássaros também.
    Um abraço

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  5. As potencialidades que encerra uma poda de sebe! Mas vale a pena ir buscar a máquina fotográfica e mais os cuidados para que os melros não enjeitem o ninho. E com a melodia dos pintassilgos termina a tarefa. Verdade, os passaritos são uma alegria primaveril. Também os tenho por aí cantando e decerto já fazendo ninho no mais alto da magnólia.
    Bom domingo e bem haja pela descrição

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  6. Chega a sensibilizar-me a sua cumplicidade com a Natureza e o respeito que tem por tudo o que rodeia o seu espaço e também pela forma como se alegra com as pequenas grandes coisas. Um texto belíssimo!
    Um beijo.

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  7. Todos os anos os passarinhos vão nidificar na minha varanda.
    E todos os anos vemos os pais ensinar os filhos a voar.
    Abraço, boa semana

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  8. Continue a desfrutar das coisas simples , são elas que nos "lavam" a alma e nos fazem sentir felizes e gratos pela vida.

    Continuação de uma semana feliz.

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  9. Uma notável obra de engenharia... todos esse raminhos entrelaçados com tamanha dedicação... aqui todos os anos, melros ou carriças também dão o ar de sua graça... nem sempre com sucesso, na lotaria da sorte, às vezes há um ou outro elemento que se perde... mas o que é certo, é que mesmo com alguma experiência menos boa, vão voltando... e por aí, creio que já acontecerá o mesmo...
    Pintassilgos também frequentam a área... mas ainda não se proporcionou achar um ninho deles...
    Sempre um prazer imenso, vir aqui descongestionar o espírito dos cinzentismos dos dias...
    Beijinhos! Continuação de uma excelente semana, calculando que por esta altura, já andarão umas avezinhas saltitantes nos terrenos próximos do ninho, quase prontas a iniciar uma nova etapa... enquanto os pais ainda as vão alimentando... por mais uns dias...
    Ana

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