quarta-feira, 19 de abril de 2023

QUER OUTRO PASTEL?

Imagem retirada da net
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O meu pequeno paraíso, ladeado por excelsas damas, a Gardunha e a Estrela - tão diferentes e, em simultâneo, tão irrigadoras do meu olhar - por mais inspirador, não basta para me apaziguar por completo. E, por uns dias, rumei para o litoral atlântico, sem artefactos tecnológicos, qual necessidade catártica na tentativa de abraçar o mar, o grande caldeirão químico onde tudo começou. 
Praia deserta, como convinha, toda a atenção para a reconhecida grandiosidade do oceano. E ele, qual eterno matusalém, parecia divertir-se a mostrar diversas facetas, com o conluio dos elementos. Enquanto arremetia contra o indefeso areal, desenhando nuvens efémeras de espuma, afastava qualquer curioso, por mais agasalhado, com a cumplicidade da neblina e do vento. Quando o intrometido se afastava, escorraçado, com uns pingos de chuva a completar o leque, o sol, inesperadamente, dava entrada em cena, primeiro timidamente, mas depressa dardejando com algum ímpeto, a ponto de o invasor sentir necessidade de despir o casaco e, quase sem se dar conta, começar a sorrir. Mas era sol de pouca dura, que o mar tem via privilegiada para invocar os elementos. E o casaco lá servia novamente de aconchego, até o visitante percorrer o que faltava para um bar com sala envidraçada, com vista privilegiada para o gigante em constante movimento, mas ao abrigo dos seus maus humores.
Ainda não eram nove horas. Na sala viam-se algumas pessoas, que pouco ou nada conversavam, pois a presença do mar, apesar da protecção da vidraça, continuava omnipresente. Escolhi o melhor lugar disponível, tendo em conta a vista, e sentei-me, deixando-me absorver, lentamente, pela paisagem marítima, com o pensamento a embalar numa deriva  de considerações, sem leme e sem âncora.
- Deseja alguma coisa?
Emergi da quase inconsciência. À minha frente estava um homem na casa dos sessenta, com alvos retoques na barba rala, devidamente aparada. Recuperei a presença de espírito e, num meio sorriso, limitei-me a dizer:
- Um café e um pastel de nata.
O homem regressou, serviu-me e, por uns instantes, deixou-se ficar a observar o mar. Aproveitei para meter conversa:
- Para quem gosta de ver o mar, e sentir o seu aroma, hoje está um dia ventoso.
Olhou-me e, após uma breve pausa, deve ter sentido que o novel interlocutor merecia alguma confiança. E ousou, num ditame quase cúmplice:
- Sabe, meu amigo, passei a vida atrás do vento, mas nunca o consegui apanhar. Mas, com tantas andanças, umas contra e outras de feição, acabei por encontrar o equilíbrio, conseguindo desenhar alguma paz. 
Olhou-me, serenamente, medindo a minha reacção. Depois, parecendo satisfeito com o que via, adoptou uma postura mais profissional, com um leve sorriso a denunciá-lo, e inquiriu:
- Quer outro pastel?
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21 comentários:

  1. Um bonito texto que gostei muito de ler. O mar é uma grande inspiração
    Cumprimentos

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  2. Amo o mar, especialmente nos dias de frio e vento. O texto, portanto, trouxe-me boas recordações. Os petiscos é que, por aqui, costumam ser outros.

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    1. Era muito cedo, Marta. Por aqui, os petiscos só costumam, por norma, a ser fruídos a partir do meio da tarde.

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  3. Correr atrás do vento. Parece loucura, mas é o que fazemos todos por vezes. É tarefa insana e pergunto-me se seremos mais felizes na paz que, finalmente, encontramos. Creio que sim. Talvez seja necessário esse cansaço e até o desalento do inacessível onde nos gastámos. A paz precisa disso para durar.
    O mar tenebroso e desmedido não me cabe no sonho.

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    1. Bea,
      O mar foi onde, aparentemente, tudo começou, e para mim faz todo o sentido tentar vislumbrar qualquer vestígio, por mais ínfimo, que nos toque no íntimo. Tarefa ingrata, é certo, mas da qual não prescindo.

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  4. Correr atrás do vento faz pensar numa vida no mar.
    Até ao sossego em terra.
    Abraço

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  5. A tua escrita levou-me a visualizar cada momento e até senti o cheiro do mar que adoro. Parabéns amigo e gostei muito!
    Beijocas e um bom dia

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    1. Sei que adoras o mar, mas só tu saberás as sensações que te provoca. Ainda vais à Praia Grande?

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  6. Ah! Que saudades de retornar à este cantinho.... Pastel e mar deliciosos. Beijos meu amigo.

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    1. É sempre um prazer sentir a tua presença, Ingrid. Está tudo bem por aí?

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  7. Todos corremos atrás do vento, não para o apanharmos, mas para fugir de alguma coisa. Sair da montanha para ver o mar é encontrar outra luz diferente, ao mesmo tempo bela e inquietante. E faz tão bem...
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  8. O vento é uma eterna metáfora, Graça. :)

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  9. Deixa escrever-te, verde mar antigo,
    Largo Oceano, velho deus limoso,
    Coração sempre lírico, choroso,
    E terno visionário, meu amigo!

    excerto: Carta ao mar, de António Gomes Leal

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    1. A Noname acrescentou, sem dúvida, ao trazer consigo as palavras de Gomes Leal. Muito grato. :)

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  10. Tenho tanto amor como medo do mar. Acho que tal me vem do meu avô que sendo mestre de traineira também lhe nutria os dois sentimentos. Empregado de mesa poeta?!
    ~CC~

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    1. Era um poeta de corpo inteiro, CCF. A conversa continuou, entre pequenos intervalos, e ele sabia muito bem separar as águas com vida, abstendo-se da estagnação.

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  11. O MAR E O VENTO....UM POETA E UM PASTEL! O ENCONTRO PERFEITO!
    UM ABRAÇO

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  12. Uma palavra, um olhar, e a cumplicidade desenha-se...
    No fundo, estamos mais perto uns dos outros do que aquilo que nos querem vender.

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  13. Fez muito bem em rumar ao litoral atlântico, pois as suas histórias são sempre interessantes. E olhe que a resposta do empregado de mesa é de mestre! Encantou-me, tive que ler várias vezes! Com interlocutores destes, vale a pena conversar.
    Bjs e boas pausas para olhar o mar, ou a serra, ou o céu. Qualquer que seja o ponto de onde se observa a Natureza, é sempre bom!
    Bjs

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