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Picasso, The bread carrier
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Após manhã retemperadora em contacto com a horta, qual cuidador mil vezes cuidado, reservo a tarde para abrir janela para o exterior.
Sento-me, compenetrado, frente ao computador. Começo a teclar ao sabor da corrente, descuidado nas ideias, qual navegante em busca do melhor rumo. Após uma vintena de palavras, ainda sem terra à vista (Vivemos tempos agitados, esbracejando, a custo, para lobrigar novos paradigmas, enquanto as supostas certezas se esvaem, com grande estrondo, como edifícios de areia.), teimam em assomar à tona, como se de coisa natural se tratasse, esboços de saramagais ensaios, mesclados de cegueira e lucidez. Parei. Depois, ainda hesitante, reservei as palavras deambulatórias, voltei atrás e encetei nova tentativa de preâmbulo. Do descrito fica apenas a leve referência, com ressalvo parentesado, para relembrar e maturar mais tarde, ultrapassando o risco de, nas linhas consequentes, me perder na teia linkada do emaranhado percurso da espécie humana, pejada de cíclicos recomeços. Por ora, para lá do livro de longo fôlego, fica apenas reservado espaço para o jornal do dia.
Por aqui, neste recanto onde a passarada se sente em casa, procurando, da melhor forma, dar corpo à mensagem resguardadora que a todos envolve, decidiu-se fazer pão.
Preparado o cenário, o acto é encarado com cerimonial ênfase. Trabalha-se a massa, sem pressas, qual diálogo ternurento em busca do melhor que ela encerra. A meio, embalado na delicada carícia da textura, recordo, com satisfação, o texto doutras andanças, mas sempre actual, a carecer apenas de levíssimo retoque:
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Envolvo-me com a farinha, a água, o fermento e o sal. O acto de amassar é cerimonioso, muito longe da aparente simplicidade, herdeiro que é de memórias profundas, plenas de significado: o esforço da sementeira, da ceifa, da moenda, etapas de um ciclo transportador de todas as esperanças, com risos, temores e cautelas.
O acto de amassar não dispensa o fato das memórias. A pouco e pouco a massa rende-se à cadência cerimonial dos gestos, abrindo portas ao cimentar da dedicação e da perseverança. Cada gesto transporta a herança de mil gestos anteriores, ancestralidade feita sabedoria nas voltas do tempo.
Levedar é dar lugar à manifestação de alegria das carícias. E a massa, crente nas intenções, deixa-se moldar antes de entrar no forno, decisiva viagem com retorno anunciado.
O amor, o sempiterno amor, carece das voltas do pão. Precisa ser feito, constantemente refeito, por vezes reinventado, mas sempre com delicada cerimónia.
O amor e o pão, feitos com entrega, serão sempre eterna bênção.
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Eternamente ligadas, muitas são as voltas da vida, muitas são as do pão. Mas sempre com um fio condutor, que as eleva: o amor.
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Eternamente ligadas, muitas são as voltas da vida, muitas são as do pão. Mas sempre com um fio condutor, que as eleva: o amor.
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Belíssimo texto (pelo menos a parte que consegui ler pois aquela parte em letras mais pequenas foi impossível.) A ligação pão-vida é muito real. Jesus mostrou-o na Última Ceia. A parte de fazer o pão, lembrou-me a infância quando a minha mãe fazia pão todas as semanas.
ResponderEliminarAbraço e saúde.
Elvira, nem pensei que poderia haver pessoas que, por motivos de saúde, não podeiam ler tamanhos mais reduzidos. Vou aumentar o tamanho da letra e... obrigado pelo alerta.
EliminarPronto, já está.
EliminarUm abraço :)
Obrigado.
EliminarAbraço
Maravilhoso terno, doce texto.O amor é o maior fio condutor! Adorei! beijos, chica,te cuida! chica
ResponderEliminar"Não importa a pergunta, a resposta é sempre o amor", pode parecer clichê, mas é tão alentador!
ResponderEliminarTão alentador quanto o seu texto, que nos renova uma esperança, um desejo de abrir todas as janelas da alma e deixar o fermento do Amor, crescer, crescer em todos nós, em todas as relações com os outros, com a Natureza, com a vida!
Fazer um pão, não é tão somente usar os ingredientes, e seguir a receita de sovar, esperar crescer, é todo um ritual, cujo ciclo traz o princípio do mundo!
Obrigada, pela escrita deste tão belo e renovador texto, obrigada!
"Amanhã, será um lindo dia, da mais louca alegria, que se possa imaginar".
Esperamos que sim, que seja.
Um beijinho.
:)
Oi A.C....que linda reflexão unindo as pontas do Todo com a Unidade, da história da vida humana na sua mais antiga ancestralidade ao sentimento eterno que move o céu e as estrelas.
ResponderEliminarUm abraço
Se o pão nos mantém vivos, o amor mantém-nos juntos. Maravilhoso e sensível texto.
ResponderEliminarBoa noite, sô AC
Sim, claro, o amor!
ResponderEliminarMas então? E o suor?
(belo texto, estou cá a pensar... e se lhe der-mos voz?)
O suor está lá, tu é que não vislumbraste.
EliminarDermos, Rogério, a forma da conjugação é dermos.
Que texto delicioso e cheio de magia. Amanhã quando comer pão vou lembrar-me de ti e das tuas doces palavras.
ResponderEliminarBeijinho AC
Uma excelente viagem
ResponderEliminaraté o pão ser repartido.
Abraço
Bela conjugação do amor e pão, do pão e amor neste texto sensível.
ResponderEliminarE como essa "horta" nos renova e alimenta. nos alimenta e nos renova.
Um abraço, caro AC
Sem cuidar muito, foste arrumando ideias, e, entre ensaios, da cegueira fez-se luz e da luz a lucidez, da lucidez fez-se pão e com este pão, que é suor e vida, nos alimentas a alma e aconchegas o coração...
ResponderEliminarUm beijinho, AC.
"O amor, o sempiterno amor, carece das voltas do pão. Precisa ser feito, constantemente refeito, por vezes reinventado, mas sempre com delicada cerimónia.
ResponderEliminarO amor e o pão, feitos com entrega, serão sempre eterna bênção.
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Eternamente ligadas, muitas são as voltas da vida, muitas são as do pão. Mas sempre com um fio condutor, que as eleva: o amor."
Lindíssimo e encheu-me a alma estas tuas palavras.
Um abraço sincero em forma de pão
Concordo plenamente, o fio condutor da vida é o amor.
ResponderEliminarUm texto espectacular, que me levou aos meus tempos de criança. Nas férias, íamos para casa dos meus avós que viviam num monte no Alentejo, uma vez por semana, a minha avó e a minha mãe faziam pão, eu adorava observar e como era tão gostoso o cheiro do pão acabado de sair do forno.
Obrigado por me ajudar a relembrar esses tempos tão especiais.
Fique bem e em segurança
Um grande abraço
Eu Sou o Pão e a Vida! Sinónimo de Amor! Os homens conhecem mal a máxima; Amai- vos uns aos outros, como eu vos amei ou o Ama o teu próximo como a ti mesmo . Certamente o mundo não seria o deserto que é, e, não haveria tanta pobreza/ fome.
ResponderEliminarBom fim de semana, AC.
Beijo
O ato de fazer pão com toda a sabedoria da vida até o crescimento da massa e a manifestação da arte em pão é um ato de amor. De fato! O padeiro um mestre por trás da obra. Beijo
ResponderEliminarThe bread carrier (1905) me lembrou essa obra de Picasso. Linda! Fato.
ResponderEliminarO preâmbulo já mostra muitas e agradáveis rotinas.
ResponderEliminarA horta, também, não poderia faltar, farta que é de geometria e renovação.
Então à conjugação do pão e do amor fiquei mesmo rendida. Quando a massa se abre, está dizer-nos que, após tantas carícias, chegou ao ponto de entrar no forno.
Meu amigo AC, voltaste com a sensibilidade ao rubro.
Beijinho. :)
De fato, fazer pão nos liga a tradições ancestrais. Como se sabe, quase não há cultura, por primitiva que fosse, que não houvesse, desde tempos remotos, desenvolvido alguma forma de pão. Água, algum tipo de farinha, e o sabor local se encarregava (encarrega) do resto. Mas, como o tempo é curto, eu, quando quero pão quentinho, faço uso de uma máquina, que trabalha por mim...
ResponderEliminarBelo texto. E como agora faço o meu pão compreendo bem.
ResponderEliminarPara alguns emprestar palavras ao próprio processo de escrever não é facil. Aqui está feito como quem amassa o pão.
ResponderEliminarCom amor diz o AC!
Um dia ainda vou fazer pão!
Agora não consigo arranjar fermento de padeiro, nem tão pouco aquelas farinhas já preparadas para fazer pão (e eu procurei a ultima vez que fui à compras!!! - mas há alguns produtos em falta nos supermercados).
Mas um dia... vou fazer! E no meu forno de lenha!
Depois contarei!
Estamos a viver um período complicado.
ResponderEliminarQue vai acabar.
Aquele abraço, boa semana
"Cada gesto transporta a herança de mil gestos anteriores, ancestralidade feita sabedoria nas voltas do tempo."
ResponderEliminarLembrei-me das mãos da minha mãe a amassar o pão com o amor e com o saber que ela punha em tudo o que fazia. O seu texto maravilhoso fez-me voltar à minha infância mais longínqua. Obrigada pelo gosto que tenho de ler o que escreve.
Uma boa semana, com muita saúde.
Um beijo.
Um texto que me fez lembrar a minha mãe a amassar o pão.
ResponderEliminarEra um ritual dos sabados de manhã.
Tanto tempo passou...tanto, mas ainda me lembro como se fosse hoje.
Boa semana.
Beijinhos
:)
Excelente texto, pão e amor, algo que é muito importante nas nossas vidas!
ResponderEliminarEu faço pão, adoro quanto estou amassar e sabe tão bem, ontem fiz com farinha de alfarroba.
Beijinho AC
P.S.a minha ausência deve-se ao acompanhamento do meu genro que luta pela vida, também alguns problemas da minha saúde. Desculpa.
Gosto de escritas como a sua que, com um simples ato de "rotina" consegue escrever arte…
ResponderEliminarNo presente, bem que gostaria de estar na minha sogra a ajudar com a horta (algo que nunca faço quando lá estou, ajudo com a lenha por exemplo) A verdade é que este tipo de tarefas, com a vantagem de se estar ao ar livre devem ser bastante libertadoras.
Por cá também já se fez pão e o de farinha de alfarroba ficou particularmente bom.
Tudo isto para dizer que, por vezes acabamos por nos limitar para lá desse "limite". No passado não estávamos bem por diversas razões e agora olhamos para trás e vemos o paraíso, quando podemos ainda assim, tirar partido do que se tem… e a maioria de nós ainda assim tem o bastante…
Gostei muito do texto, abraço
Sou "amarrada" em palavras, como sabe, e uma ignorante em aparelhagens.
ResponderEliminarSó hoje vi o seu comentário e a sua fidelidade aos frutos...
Por ser amarrada em escrita que importa ler é que deixo um obrigada pelo texto e pelo resto.
E um abraço.
Um texto espantoso... que nos remete para a essência e as raízes de cada um... algo que já andava tão ausente, na espuma dos dias, para tantos... até chegar este stop obrigatório, para todos...
ResponderEliminarMais uma publicação de excelência por aqui, AC! Parabéns!
Beijinho
Ana
Se o traquejo de amassar pão estiver ao nível da escrita, não há dúvida de que o alimento sairá delicioso. Fique bem, amigo.
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