.
.
Ladeado de montanhas, como que a querer esconder-se das confusões do mundo, o pequeno rio filosofava, tranquilamente, enquanto ia acenando ao casario de xisto, com sardinheiras nas varandas, encimado pela enorme mancha verde dos pinhais. Nas margens, domadas, de há muito, pela força de braços, estimulavam-se hortas, milheirais e árvores de fruto.
Bem cedo, mal as manhãs se desenhavam, já os ganhões, irmanados ritualmente às suas juntas, irrompiam pelos caminhos para retomar a eterna azáfama. Cientes do seu estatuto, davam ordens aos bois, enquanto lavravam, como se tivessem divisas:
- Vira aí 'marelo! Ah, coisa linda!
O fumo dos fornos, entretanto, anunciava novas fornadas de pão fresco, de milho ou de centeio. No final, assegurada a fornada, as mulheres ganhavam um ar mais despreocupado e, pegando num naco de toucinho, numas rodelas de chouriça ou numa sardinha, era o que houvesse, embrulhavam as iguarias com a última massa para fazerem umas picas, reservando-as, depois da passagem pelo forno, para presentearem as suas crias como se da coisa mais preciosa se tratasse.
De vez em quando, dando tréguas à pacatez, passava uma cabrada, anunciada pelos chocalhos, com os impropérios do pastor a delimitar espaço a qualquer animal mais rebelde, a cobiçar uma qualquer iguaria da vizinhança.
- Onde é que tu vais, Castanha? Ah, filha da p…!
A meio da tarde, indiferentes à poeira do caminho, cardumes de ganapos rumavam aos locais do rio mais propícios a um mergulho, exibindo, inocentes, a esbelta nudez, enquanto alardeavam proezas natatórias. Por entre as pausas, estendidos ao sol nos grandes lajedos das margens, não resistiam à vaidade, entoando com um tom de cantilena:
- Eu sei um ninho de pintassilgo!
No final do dia, comandada pelo badalo do sino, a pequena aldeia recolhia-se, com cada um, em sua casa, a dar certidão de vida à demais família. Depois da ceia, caso a lua estivesse de feição, vinham para a rua e sentavam-se nos degraus do balcão, dando de caras com a vizinhança. Era então chegada a hora - tal como nas noites invernosas, junto ao lume – de soltar o maravilhoso que havia dentro de cada um, polvilhado de contos, de cenas jocosas, de canções e de lendas. Respeitando as hierarquias, as primeiras palavras pertenciam sempre ao mais velho:
- Era uma vez o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas. Um dia, estavam eles no meio de um pinhal, resolveram…
.
.
Lindo de se ler!
ResponderEliminarAqui está um texto para ninguém botar defeito!
Saudações!
Embora, filha da cidade, uma parte da minha vida, foi vivida numa Vila (hoje cidade) bem rural na altura. Lê-lo, fez-me lembrar esse tempo, tal a nitidez da descrição, neste post.
ResponderEliminarPenso que, o AC voltou :-)
Ouvi tantas vezes essas estórias do arrasa-montanhas e arranca pinheiros. Ri com gosto ao ler e o fazer-me lembrar as estórias ditas à noite junto à lareira na minha aldeia.
ResponderEliminar.
Abraço poético
Um texto maravilhoso que me transportou à minha infância embora nela não houvesse casas de xisto com sardinheiras nas janelas. Mas o rio, estava presente, com as vozes dos homens misturando-se ao chap...chap... dos remos, enquanto montavam o cerco que mais tarde, ao levantar, lhes daria os peixes que mitigariam a fome que os ordenados de miséria não matavam. Estava lá as quintas, as juntas de bois lavrando a terra, a vaca rodando a nora. Quantas vezes bem pequenita eu ia para lá, tocar a vaca quando parava, só porque lá o caseiro sempre me dava de almoço, comida melhor do que a sopa deslavada que havia em casa. E as histórias à noite, quando sentados nas escadas do velho barracão ouvíamos o meu pai. Ele nunca tinha ouvido falar da Bela Adormecida, da Gata Borralheira, ou de muitas outras histórias infantis que hoje todos conhecemos, mas tinha um enorme reportório de histórias de bruxas e lobisomens que nos faziam o coração a bater descompassado com o medo. Penso que herdei dele o gosto por contar histórias embora as faça mais românticas.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Conheço bem a ambiência e o andar à caça de ninhos.
ResponderEliminarDe há MUITOS anos.
Aquele abraço
resolvem...dar tréguas e abraçaram-se em franca amizade pondo de lado as questiúnculas e talvez programando novas histórias:)))
ResponderEliminarBeijos e um bom dia
Foi como se estivesse no local, a ver as montanhas, o casario de xisto, as sardinheiras nas varandas, as cabras, os pastores. Até andei a chapinhar no rio até me cansar. E ao fim do dia fiquei a ouvir as histórias que tanto gosto que me contem...
ResponderEliminarLindíssimo este texto que li e reli com um gosto enorme.
Muita saúde.
Um beijo.
E o que eles resolveram? Uma narrativa lindíssima. De repente mudei de lugar e transportei-me para esse paraíso.
ResponderEliminarBeijinhos
Fanny
Ver, vejo - sentir, sinto este belo recorte de um tempo já andado. Vida afadigada, sem covid, rotina gostosa e aquele cheiro a pão quente com o que houvesse ... Era o tempo em que tudo sabia a verdade.
ResponderEliminarNa minha aldeia tudo mudou. Inunda-se de gente apenas em tempo de festa.
Um abraço e saúde, meu amigo.
Um belo texto que revela o melhor de nós demonstrando que no fundo o que precisamos é a vida em contato com a natureza e principalmente a harmonia da simplicidade na paz que é nossa maior riqueza.
ResponderEliminarUm abraço
Senti-me em casa...
ResponderEliminarMaravilhoso, AC.
Beijinho
A continuação das gerações, inícios que revelam finais de ciclos. E novos ciclos que se iniciam. Lindo texto AC. Estive vendo que já faz uns 10 anos que visitamos um o blog do outro. É um bom tempo e cada vez mais me impressiona a tua escrita tão fluída, cheia de encantos e inteligente demais. :) deixo um beijo
ResponderEliminarThank you for sharing this wonderful post keep your awesome work
ResponderEliminarI have many hobbies. I love to travel and read. But my favorite hobby is cooking. Let me tell you why! First, I'll tell you a little bit about why I started cooking. Secondly, I'll give you some information about what I like to cook. Third, I will say how I use the Blog ẩm thực for cooking.
When I started cooking, I was 10 years old. My mom wants me to be a chef. She has always believed that girls have to make different types of food, because one day they will get married. In my country, it is normal for girls not to cook. I feel lucky because I can cook many dishes. Now that I cook some of the dishes my children and husband love, I become happy and proud of my mother and myself. Foody
Que belo texto. E nos deliciamos com a linguagem tão depurada para nos dar conta de forma tão poética da vida nas aldeias...
ResponderEliminarUm abraço,
Poeta , viajei bastante com seu texto .
ResponderEliminarFoi uma viagem linda .
Obrigada pela partilha .
Beijos
Lindo de ler.
ResponderEliminarQuase que a escrita nos deixa ver as cenas, sentir as vozes e os cheiro.
Bonito texto!
beijinhos
:)
A delícia e a paz, do nosso Portugal profundo, e que neste pedaço de maravilhosa prosa, se deixa apreciar!...
ResponderEliminarAdorei!!! Fez-me viajar no tempo, para um cenário bem idêntico, na zona Centro, nos meus tempos de juventude...
Um grande abraço!
Ana