sexta-feira, 23 de outubro de 2020

DE ALMA CHEIA

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 AC, Estrela vista da Gardunha
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Olho para ela. É forte, dominadora, altiva, mas com o tempo tornou-se acessível, à custa do sacrifício de alguns flancos, desmultiplicando-se, conforme a latitude, em vários portais.
Continua bela, continua fonte de vida, apesar dos abusos. Dela brotam águas mil, moldando, lentamente, o omnipresente granito, eterna promessa irrigadora que se alarga para lá do horizonte. Mas começa a cansar-se de alguns admiradores do tipo "maria vai com as outras" que, incapazes de se debruçar sobre a sua essência, teimam em deixar rasto por onde passam.
Desta vez entro por Manteigas, uma espécie de presépio vivo espalhado pela parte mais baixa da encosta, onde o Zêzere galga os últimos pedregulhos antes de lobrigar um percurso mais tranquilo. À minha espera está o Zé Pedro, profundo conhecedor de todos os recantos da Estrela, que, após os cumprimentos mesclados de sorrisos,  me questiona.
- Então, subimos o vale glaciar do Zêzere, em direcção às Penhas da Saúde, com paragem no Covão d'Ametade, ou vamos para as Penhas Douradas?
Sugiro o percurso das Penhas Douradas, mas não para lá chegar. Quero revisitar a Rota das Faias, que nesta altura apresenta uma policromia de sonho, com nuances entre o verde, o amarelo, o laranja e o castanho. Sensibilidades.
Sorriu, assentiu e lá fomos nós, galgando a inclinação curva após curva, até lobrigarmos um chafariz a debitar a frígida água das entranhas da serra, a anteceder o cruzamento, à direita, que nos levaria ao nosso objectivo. Paramos o carro numa pequena folga de terra batida, saímos e olhamos em volta. Reparo que, desde a minha última visita, o mato está mais curto, como se um aparador tivesse passado por ali, e disso dou conta ao meu anfitrião. Explicou-me que isso se devia a um projecto inovador, que envolvia um rebanho considerável de cabras, e que, para além da exploração tradicional do leite, para queijo, e da carne, o objectivo era a prevenção de incêndios. Quanto mais as cabras comessem, menos as labaredas teriam que comer. Gostei da ideia.
Aconchegamos as mochilas - só agora reparo que me esqueci da máquina fotográfica - e damos os primeiros passos em direcção ao santuário. No início, quase sem me dar conta, acelero o passo, qual criança no almejar dum brinquedo, com pressa de chegar, mas quando as faias nos começam a envolver, impondo respeito, o ritmo desacelera, numa postura quase reverencial. É então hora de abrir as portas da alma, de nos deixarmos envolver na suave tonalidade das cores outonais, de deixarmos que a arquitectura das folhas seja parte integrante da Grande Arquitectura. E, por momentos, não há palavras, quase que não há passos, que se dane a máquina fotográfica. Aquilo que nos envolve é muito maior, aquilo que nos preenche, como se todas as peças do grande puzzle estivessem no lugar, não tem cotação em qualquer mercado. É um momento único, longe e perto de tudo, a percepção ao alcance duma mão, dum olhar ou dum sentir, mas que, simultaneamente, se mantém à distância, como que a resguardar-se para alguns momentos, para alguns eleitos. E por ali ficamos, em puro deleite, cientes de que não podemos levar as faias connosco, apenas uma leve tatuagem.
Quando nos despedimos, já em Manteigas, poucas palavras troco com o Zé Pedro. Ele já me conhece, basta-lhe olhar para o meu rosto para saber que regresso de alma cheia. E, cúmplice, sorri.
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Rota das Faias - Imagem retirada da Net
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20 comentários:

  1. Há realmente lugares assim, que nos deixam de alma cheia.
    Gostei muito de "caminhar" neste texto.
    Vou daqui de alma cheia.

    Bom fim de semana, AC.
    Bj

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  2. Tudo tão maravilhoso! Adorei! Abraços, chica

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  3. Grata pelo passeio que me proporcionou, por tão belo local.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  4. Um texto poético encantador. Um passeio daqueles que não nos esquecemos, já que o trazemos no íntimo, com festejos pelo presente. Abraço.

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  5. AC, deixou tudo decerto uma marca maior aí dentro do que em qualquer fotografia :)
    Já não vou à Serra para aí há uns 10 anos.
    Beijinhos

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  6. Muito bom este seu texto.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  7. Gostei do 'mimo' com que te auto-presentaste nessa fantástica caminhada, por caminhos que bem conheces e dos quais nunca te cansas.

    Esquecimento imperdoável, foi o deixar a máquina fotográfica em casa, que poderia, agora, maravilhar-nos duplamente.
    Ao vermos o que viste e ler o que sentiste. :)

    Bom fim de semana, AC.

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    1. Oh... faltou-me ali um (e), sei que deste fé, imagino que tenhas dado, por isso venho rectificar...

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  8. Gostei de ter ido à serra contigo. já fui no verão e no inverno. Quero voltar no outono. Espicaçaste-me.
    Pena não teres trazido aqui para as " INTERIORIDADES" a policromia das Penhas Douradas.

    Beijo.

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  9. Hoje por ser o dia que é...estou um pouco mais em baixo mas o TIR fazer essa viagem contigo ficou melhor:) mas meu amigo fiquei ainda melhor com estas tuas palavras:
    "É um momento único, longe e perto de tudo, a percepção ao alcance duma mão, dum olhar ou dum sentir, mas que, simultaneamente, se mantém à distância, como que a resguardar-se para alguns momentos, para alguns eleitos. E por ali ficamos, em puro deleite, cientes de que não podemos levar as faias connosco, apenas uma leve tatuagem."
    Obrigado por este momento.
    Um enorme abraço e XAU

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  10. Esquecer a câmera fotográfica é pecado mortal, pelo dano que causa aos leitores, gente como eu, que, já se sabe o motivo, está há muito tempo sem sair de casa para um trilha. A beleza do texto, no entanto, compensa o dano rsrsrsssssssssss.
    Um abraço, que a nova semana seja maravilhosa.

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  11. Uma linda paisagem que se descortina aos olhos da alma... fica para sempre na memória.
    Um abraço

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  12. Bela prosa poética e a Serra num elogio merecido.
    Muito bom voltar aos blogues, o fb não me deixa ler que gosto. Mas estou a tentar :-)

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  13. Há uns anos fiz um workshop de fotografia na Serra da Estrela no outono, a parte prática foi fotografar a montanha com a luz do sol a nascer e o Covão d'Ametade, mais o matizado das árvores, as folhas, etc. Foi mágico e até hoje trago na memória esses momentos. Depois disso já voltei às entranhas da serra várias vezes e algumas a pedalar, a forma como mais goto de a ver. Maravilhosa AC. E Mágica...

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  14. Um passeio à serra da Estrela com estas palavras fantásticas! Lembrei Torga: "So quem sobe à montanha toca o céu"... E saí também de alma cheia.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  15. Muito bom passear por aqui, "ver" as águas do Zêzere
    Boa semana

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  16. Paisagem FABULOSA!!!
    Aquele abraço, boa semana

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  17. AC

    que belo passeio!
    eu tmbém saí daqui de alma cheia ao ler estas palavras.
    belo texto
    beijinhos
    :)

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  18. Maravilhosa paisagem poética! Adorei cada palavra, AC! Mas seria um colírio para os olhitos haver uma imagenzinha... Enfim!... Eu não posso reclamar muito!... Fui há tempos à Quinta da Regaleira, em Sintra, quase um dia inteiro... e quem se esqueceu de levar a máquina, para registar imagens, daquele lugar encantado?... Pois fui!... :-(
    Abraço! Continuação de uma feliz e inspirada semana!
    Ana

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  19. Poeta , estive com vocês nesta passeio fantástico lendo seu belíssimo texto .Obrigada .
    Beijos

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