sábado, 20 de março de 2021

LEVAS-ME CONTIGO?

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Margarida Cepêda, Inquietação e segurança
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A acção decorre na passada semana, última do confinamento dos alunos do 1.º Ciclo, numa sala de Acolhimento para filhos de trabalhadores da linha da frente. Com toda a gente mascarada, note-se.
A Marisa, vamos chamar-lhe assim, era uma das frequentadoras, e fazia-se notar por apresentar alguma relutância em deitar mãos às tarefas que lhe estavam destinadas, após as sessões síncronas com a sua professora. Argumentava, empatava, tudo lhe servia de argumento para não deitar mãos à obra. E tudo indicava que o seu comportamento se tornaria padrão.
Eu era presença recente naquela sala, mas depressa a Marisa se fez notar aos meus olhos: pelo que ela não fazia, pelo que ela desafiava. E aceitei o repto.
No início, com as devidas meças a um novo interveniente, ela fez-se de nova, reagindo com cautela. E, embora fosse concretizando qualquer coisa, tudo o que produzia era sempre cadenciado por pausas mil, inquirindo por tudo e por nada. Mas sempre com um olhar atento, como se medisse a intenção de quem a solicitava. Mas eu tentava, cabriolava, tentava seduzir. E assim se passou um dia, dois dias...
Entretanto, e atendendo à minha preocupação, fiquei a saber, por consultas várias, que havia indícios de que, na família dela, talvez houvesse violência doméstica. Um talvez que me soube a escusa, a falta de envolvimento. Mas desta faceta dalguns seres já eu estou vacinado.
A meio da semana, quando tudo parecia mais do mesmo, a Marisa chamou-me. Aproximei-me, solícito, para indagar daquilo que ela carecia, e ela fez um gesto, aparentemente natural, a pedir aproximação. E eu correspondi. De repente, quando nada o fazia pressentir, ela pega na minha mão e, qual gesto dum qualquer activista, resgata-a para debaixo do seu braço direito, enquanto a aperta com a sua mão esquerda. Depois, reclinando o corpo de encontro ao meu braço resgatado, como se fosse um apoio, liberta a sua mão direita e começa a escrever ininterruptamente, qual dealbar dum barco em porto seguro. E eu, atónito, assistia àquele inesperado fervilhar de vida.
A Marisa prosseguiu na escrita, convicta, mas às tantas, sem nunca me olhar nos olhos, diz-me, num tom íntimo, quase discreto:
- Levas-me contigo para a tua casa?
Ainda esbocei "a tua mãe ficava tão triste, Marisa", mas nada que eu dissesse me faria apagar o impacto dum pedido tão espontâneo. E, apesar do contentamento pela confiança depositada, um aperto devassou-me as entranhas, trespassado pelo grito interior de tantas marisas, pelo desespero de tantas mães.
Para lá das máscaras, a vida, por vezes, é mesmo madrasta.
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16 comentários:

  1. "" Para lá das máscaras, a vida, por vezes, é mesmo madrasta.""

    Tudo dito nesta belíssima frase. O meu elogio
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    Feliz fim-de-semana
    Abraço
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. De repente não tenho palavras, apenas os olhos rasos de água. A vida é muito madrasta sim, muitas mais vezes do que supomos.

    Boa tarde, sô AC

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  3. Os pequenos estão sofrendo demais com a pandemia, muito mais do que podemos pensar. Imagine-se agora o que passa pela cabecinha dos que têm de enfrentar um ambiente doméstico não muito ajustado!...

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  4. Meu Deus! Fiquei sem palavras.
    Abraço e saúde

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  5. Comovi-me e bem-dito sejas assim como muitos outros professores que sabem ler que algo se passa nos ou com os alertas duros e tristes de tantas crianças que temem em dizer/falar/agir.

    Parabéns e recebe o meu obrigado em nome de tantas Marisas!

    Beijos e um bom domingo

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  6. Comovidos e atuantes. Assim deve ser. Sempre houve problemas, mas a pandemia agudizou-os.

    Um apertado abraço, AC.

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  7. Bah! Quanto será sofre a Marisa para fazer um pedido assim? Impressionante! Gostei de ler! Obrigadão pelo grande carinho por lá! Fiquei até comovida!Obrigadão! abraços, chica e linda primavera!

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  8. Comovente esta sua crónica. E inquietante por perceber que há imensas crianças vítimas de uma violência que elas nem podem entender e que as inibe de serem como as outras. A pandemia está a fazer muitos estragos.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  9. Nas situações de carência afectiva e muito desnorteamento, por vezes, senão sempre, basta apenas um arrimo, um ponto de apoio, uma certeza de segurança, para que a criatividade irrompa e rompa, qual dique, as barreiras que a retinham.
    Um bonito apontamento da vida atribulada de uma criança, adultos também os há. Situações agudizadas por estes tempos em que rostos e almas se mascaram e que o Professor/confessor tem a seu cargo, a tarefa de iluminar mentes e, levar luz às almas que se afundam na escuridão. Isso, pode ser um trabalho árduo, embaraçoso até, mas, não duvido, muito compensador sob o ponto de vista humano.

    Um abraço, AC.

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  10. Sensibilidade à flor da pela.
    Abraço, boa semana

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  11. Que texto lindo, meus parabéns.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  12. Um tema tão sensível, AC... Mas que tu o aborda de forma tão humana, delicada como a situação exige e existe.
    Sorte que existem professores (e pessoas como tu), que enxergam para além do óbvio.

    Essa criança não deve ter uma vida fácil.

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  13. Viva, Caro AC
    depois dum alheamento por largo tempo, destrambelhado de ponteiros e carris, volto aqui e encontro esta pérola de humanidade.
    Fico grato, pela história que se me afigura verdadeira e também pelas tentativas que fez de me ligar os fusíveis, por duas vezes, creio.
    Cá vamos como diz o povo "Na forma do costume", agora sentado à espera da "vaccine", eu que deveria estar na 1.ª fase mas, por disfuncionalidades orgânicas do SNS, não tenho o código da patologia actualizdo, apesar do meu protesto, a ver os rastos de querosene que voltaram ao céu.
    Voltando ao ratinho da aula, demorou algum tempo a estudar o interlocutor. Conquistada a confiança e a necessidade não deixou de procurar um nico de queijo onde roer. E há solução?
    Saúde, caro Amigo.

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  14. AC

    Pois é! Quantas Marisas não existem por aí!
    Fiquei com um aperto no coração.
    O texto está escrito muito bem, como já é hábito, mas chega ao fundo do coração.
    beijinhos
    :)

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  15. Solidários em todos os apeadeiros
    Abraço

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  16. Realidades... difíceis de imaginar, em tempos normais... e que decerto, muito mais se agudizaram em tempos de confinamento... com agressores e agredidos, a conviverem forçosamente perto, bem mais do que o normal... criando-se as condições ideais, para situações limite...
    Um texto profundamente tocante, e comovente... e que nos faz reflectir... pois por caprichos do destino... qualquer um poderia estar no lugar de uma Mariza, em criança... pois a violência, é algo transversal, a qualquer meio ou condição social...
    Beijinho
    Ana

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