domingo, 26 de setembro de 2021

ARROZ DE CAMARÃO COM ABRAÇO SEM FUNDO

.
.
Levantou-se cedo, como era habitual. Após o pequeno almoço, com um livro ao alcance do olho, deixou que a manhã se arrastasse, numa modorra aprazível, espreitando a passarada, de quando em vez, através da vidraça. Tudo estava tranquilo, o mundo parecia no seu lugar. Havia tempo para preparar o almoço.
De repente, qual trombeta de alarme, o telefone entoa a sua cantilena. Quem seria?
Não eram desgraças nem promessas do paraíso, que isto de vender uma ideia tem muito que se lhe diga. Era, muito simplesmente, o filho, a anunciar que chegariam mais cedo para o almoço, pois o Miguel, o seu neto, tinha trocado as voltas ao sono. Olhou para o relógio. Não se podia descuidar, pois o que antes lhe parecia muito passou a ser resvés Campo de Ourique.
Picou a cebola e os alhos e reservou num prato. Depois, sem mais delongas, pegou em dois tomates maduros, vindos directamente da horta, tirou-lhes a pele e passou-os pela trituradora. Voltou a reservar. A seguir, tentando manter-se organizado, pegou no tacho das grandes ocasiões e preencheu-lhe o fundo com azeite da região, acrescentando-lhe uma folha de louro. Parou um pouco para pensar. Sim, parecia que tudo estava segundo os conformes. E retomou a azáfama. Tirou os camarões do frigorífico, acenou-lhes com o olhar e, após deixar a cebola e o alho a refogar - e recordou-se que no norte se diz esturgir - começou-os a descascar, reservando as cabeças num prato. Pelo meio, e quando se certificou que o refogado estava no ponto, acrescentou-lhe o tomate triturado, em lume brando, a fim de apurar da melhor forma. Depois, concluído o descasque, deixou os moçoilos camarões a exibir a sua nudez, muniu-se duma varinha mágica, meteu as cabeças num copo e triturou-as comme il fault. Era este o verdadeiro segredo da receita.
Voltou a fazer um compasso de espera, contrariando o tempo, enquanto apelava à memória que lhe indicasse o que faltava. Não era muito.
O tomate parecia já ter apurado. Depois de colocar os moçoilos camarões no tacho, aconchegados com o caldo das deliciosas cabecinhas, devidamente coado, mediu a quantidade de arroz - vaporizado, no caso, pois previne qualquer excesso de tempo na cozedura - e acrescentou a água devida, na proporção de 1 por 3, mas já descontando a quantidade de caldo, que quem é habitué na cozinha sabe do que estou a falar.
Entretanto, e depois de colocada uma pitada de sal e dum pouco de jindungo, deu um saltinho à horta e colheu a salsa suficiente para um agradável raminho de cheiros.
Chegaram à hora, os pais puseram a mesa e ele, qual recompensa abençoada, deixou-se envolver pelos braços do Miguel. O arroz de camarão, regado com um verde Deuladeu, da casta Alvarinho, era para ser fruído como deve ser, em aprazível convívio. Mas antes, e mais que tudo, o calor daquele abraço era para ser sentido, fruído, pois não tinha correspondência em qualquer dicionário, a não ser o da alma.
.
.

7 comentários:

  1. hUmmm, mmha mmha, a sua sorte é eu estar longe

    Ah, pois era, pendurava-me :-)

    Boa noite, sô AC

    ResponderEliminar
  2. Há abraços que não se conseguem descrever.
    Abraço, boa semana

    ResponderEliminar
  3. Não troco um abraço de um neto por nenhum prato que faz crescer água na boca. Como te compreendo amigo e amanhã irei às duas "camaroas" daqui. Uma estará na escola e a mais velha já com 18 anos como entrou na faculdade em matemática, aguarda pelo começo de uma nova etapa.
    Desfruta migo porque esses laços são fundamentais para a nossa saúde mental.
    A-D-O-R-E-I
    Beijocas e um bom dia

    ResponderEliminar
  4. Fiquei com a receita que me pareceu muito gostosa. O seu texto sempre tão agradável de ler.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  5. Maravilhoso texto!
    Salivei com a ementa. Ah mas o melhor é o abraço profundo!:))
    -
    Silêncios do tempo...
    -
    Beijos, e uma excelente semana!

    ResponderEliminar
  6. Adorei o texto, com a preciosa receita!
    O almoço deve ser sabido muito bem... mas os abraços, nesta fase em que andamos todos com sede de toques, terão sabido pela vida!
    Só trocaria a salsa, por coentros!... :-))
    Deixo um beijinho e votos de continuação de dias felizes, com saúde para todos!
    Ana

    ResponderEliminar