sábado, 30 de abril de 2011

PARA LÁ DAS BRUMAS

.Hélio Cunha, A Ilha
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Sinto que me ouves, que entendes a obsessão pela transparência das águas.
A terra queimada, enfeitada em acordes ruidosos, é propícia à cegueira. Sente-se a agitação da turba, clamando por eructação e riso, e até o artesão se recolhe na tigela da sobrevivência. A dor da dilaceração dos seixos ultrapassa as fronteiras da física, todo o sentir da alma é chaga em carne viva.
As palavras, por mais acertadas, não encontram eco, e poucos são os que ousam arrastar-se para lá do pesadelo. Só os pássaros, na angústia da construção do ninho, parecem pressentir as brumas dos novos tempos.
A história repete-se. Uma ilha embrião, o cuidar das feridas, o renascer duma ideia. Ainda que, por enquanto, em banho-maria.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

RIO SEM FOZ

.Hélio Cunha, Estranha Melodia
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Procuras, na penumbra, indícios das minhas mãos, mas a água do meu rio corre em múltiplas direcções. A ânsia de tudo querer absorver há muito ficou para trás, e há na sua inquietude uma espécie de serenidade, pois sabe da importância do verdadeiro nome das coisas. É por isso que no meu silêncio há sempre vestígios de aromas silvestres e do canto dos pássaros.
Tu, que queres entender, diz-me: haverá maneira de encontrar um rio sem foz?
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sexta-feira, 22 de abril de 2011

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Após amável convite da Suzana Martins, hoje poderão encontrar-me no
Entre Marés
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A vossa presença será bem-vinda.
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quarta-feira, 20 de abril de 2011

ASAS

.Margarida Cepêda, Sobre o rigor da geometria, o véu diáfano da fantasia
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Quando chegava o verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.
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Reedição
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

BANDEIRAS

.Margarida Cepêda, A bela e o bélico
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A procura de ti leva-te a múltiplos devaneios, que enfeitas com cores capazes de seduzir outras ilhas. É esse o instinto primeiro. Mas, dissimulado no brilho efémero, o abismo espreita. De tão preocupada com os outros, esqueces que o que de mais precioso tem a nudez interior é para ser sentido, não para ser usado como bandeira. As bandeiras íntimas insinuam-se por si, não se manipulam.
Sabes, os guerreiros tanto chegam como partem. Que se saiba, ainda não foi descortinado o horizonte que sacie a sua sede. Talvez, no mais fundo deles, apenas aspirem à cumplicidade para o calcorrear do caminho. O verdadeiro guerreiro não te olha como um final de jornada, mas como um igual capaz de partilhar o riso e o desassossego.
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sábado, 9 de abril de 2011

À PORTA DO REINO DOS AFECTOS

.Margarida Cepêda, À porta do reino dos afectos
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Estavas numa encruzilhada. Sabias há muito que o brilho das pedras tinha seduzido os homens, e que a fealdade que irradiava da sua posse não augurava horizontes agregadores. Não era esse o cenário que sonhavas.
A harmonia era possível, sim, mas não bastava a vontade dos afectos. O mundo onde querias depositar o melhor do teu respirar não era um microcosmo, requeria envolvência plena: que as ilhas tomassem consciência das outras ilhas, que o aroma das flores fosse partilha colectiva. Só assim o teu vinho mais íntimo revelaria o melhor de si.
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sábado, 2 de abril de 2011

AREIA

.Margarida Cepêda, Enfrentando-se
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Sinto a tua inquietação, a ânsia de domares as sombras que perturbam os teus dias.
Quando desponta a aurora, pegas no melhor de ti e vais ao encontro do marulhar das ondas, ritual primevo do decifrar da essência apaziguadora. É a hora de te despires, de enfrentares a tua efemeridade.
Quando começas a entender o voo das gaivotas, há sempre algo que as impele para longe. É grande a tua sede de infinito, perpetuação do teu desassossego, mas não te basta entender, tu queres o poder do voo. E, sem te dares conta, apesar de mais forte, ficas cada vez mais só.
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sábado, 26 de março de 2011

O CALOR DAS MÃOS

.António Tapadinhas, Azul, azul
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Desligam-se as amarras do convencional, passo irreversível para o vislumbre da arquitectura do entendimento.
O confronto com a nudez, em paisagens pouco definidas, resgata o choro umbilical. O olhar vai-se fixando em minúsculas crateras, pequenos vales, grutas dispersas, instantâneos orientados em convergência disforme. A visão começa a construir referências, integrando os ventos num campo cada vez mais nítido. A pouco e pouco insinua-se a textura do barro, e o choro mistura-se com o riso. Aumenta a dimensão do olhar. A percepção do barro amaina o vento, mas não faz desaparecer a inquietude. São tantas as estrelas perante um pedaço de argila...!
É então que se sente o desabrochar da flor, rompendo a ténue fronteira da solidão. As estrelas continuam longe, mas há um calor novo que renova o sentido das coisas. O calor das tuas mãos.
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domingo, 20 de março de 2011

ESPERA

.Hélio Cunha, Movimentos de um visionário
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Pudera eu amainar as tuas inquietações, vesti-las com as cores mais sublimes e tranquilizadoras. Mas, sabes, eu não posso percorrer o caminho por ti e oferecer-to numa bandeja. A convicção, na sua aparente disponibilidade, requer olhares plenos e pegadas profundas.
As flores, em apelo mudo, gritam aos quatro ventos a simplicidade dos aromas, mas apenas as sandálias do artesão parecem estar em harmonia com a mensagem.
Espero, mas não desespero. Por aqui há muito que as mimosas estão em flor.
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segunda-feira, 14 de março de 2011

SOBREVIVÊNCIAS

.Margarida Cepêda, As nossas teias
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Os tempos não iam para grandes assomos de liberdade.
O trabalho no terreno, verdadeiro sustentáculo de todo o edifício, gemia até mais não com a carga opressora. A cúpula, por seu lado, nunca se dava por satisfeita, enfeitiçada que estava na análise dos gráficos. E, na lógica do gabinete, mais um ponto percentual não custava nada. Todos sentiam o cheiro do medo, e as chefias intermédias, entaladas que estavam entre o coração e a razão, tentavam encontrar pé no mar da sobrevivência.
O Teles, chegado há pouco a um cargo de chefia - na verdade não mandava nada, era apenas um mero transmissor - começou por sentir cócegas no ego aquando da sua nomeação. Mas em breve o sorriso deu lugar à angústia quando se apercebeu do seu verdadeiro papel.
O tempo, contudo, faz milagres. E o Teles, qual ovo de Colombo, julgou encontrar a solução para anular a sua estreiteza. Forjou um projecto que agradasse às instâncias superiores e, em simultâneo, piscasse o olho às bases.
A cúpula, sorridente, bateu-lhe nas costas como quem elogia um menino. As bases, porém, já há muito tinham perdido a vontade de sorrir. O Teles era apenas mais um que tinha vendido a alma ao diabo.
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