.Para a Graça
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Todos os anos se repete o ritual. À escola chega uma vintena de novos alunos, passaritos de asas curtas em busca da carta de alforria no voo. A professora, ao recebê-los, tem como preocupação que façam daquele o seu espaço, que criem laços afectivos e cumplicidades, ao mesmo tempo que lhes vai incutindo regras e formas de estar, fundamento básico para lhes começar a introduzir, paulatinamente, os rudimentos da interpretação dos diversos códigos que lhes proporcionem a melhor ligação possível com o mundo que os espera lá fora: na língua materna, na matemática, no conhecimento do meio envolvente, ao mesmo tempo que lhes vai estimulando a solidariedade, a civilidade, a amizade e outras ade.
Os olhos da maioria não escondem o entusiasmo. Parecem potrinhos sem freio, ávidos de galopes intermináveis por territórios bem delineados no sonho, apenas apaziguados por sono retemperador.
Mas há sempre um ou dois que não trazem as defesas necessárias para conviver harmoniosamente num grupo com tanta energia à solta, ávido de se manifestar e de deixar marca de si. Sentem demasiado a mudança de território, e o desconforto fá-los recordar, constantemente, a segurança das mãos da mãe, o seu cheiro, a sua protecção...
O Tiago é um desses casos. A vivacidade dos colegas não o tranquiliza, e cada gesto mais exuberante é uma ameaça para o precário equilíbrio do seu pequeno mundo. A professora, percebendo-lhe a insegurança, tenta apaziguar-lhe as angústias e, após ouvir-lhe a invocação da progenitora pela enésima vez, sugere-lhe que traga para a sala a fotografia da mãe.
No dia seguinte, com um esboço de sorriso nos lábios, o Tiago apareceu na escola com uma moldura com a fotografia da mãe, e mostrou-a à professora. Esta, com a cumplicidade estampada no olhar, elogiou-lhe a beleza, e encorajou-o a colocá-la em cima da mesa de trabalho.
Embora recorrendo a frequentes olhares para a fotografia, o Tiago começou a encarar a escola de forma mais tranquila. As tarefas deixaram de ser penosas, as caras dos colegas começaram a ter contorno de amigos, ousou aventurar-se nas movimentações do recreio...
O pior era quando chegava a hora do almoço. O miúdo, que até aí continuava a trepar degraus na sua integração, quando chegava o meio-dia não conseguia evitar o aparecimento dos seus fantasmas. Apavorava-o o ambiente do refeitório, sem a presença da professora, não conseguindo lidar com a exuberância dos colegas mais velhos, com outro traquejo na arte de lidar com os outros.
Quando a angústia da hora do almoço ameaçava tornar-se um hábito, foi o próprio Tiago a encontrar a solução. Um dia destes, ao chegar a temida hora, aproximou-se da professora e pediu-lhe, baixinho:
- Professora, posso levar a minha mãe comigo?
Perante o acenar positivo, o pequenote pegou na moldura, meteu-a no bolso com todo o cuidado e lá partiu, mais confiante, em direcção ao refeitório.
Nesse dia, na reconfortante companhia da mãe, o Tiago comeu a sopa toda.
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Todos os anos se repete o ritual. À escola chega uma vintena de novos alunos, passaritos de asas curtas em busca da carta de alforria no voo. A professora, ao recebê-los, tem como preocupação que façam daquele o seu espaço, que criem laços afectivos e cumplicidades, ao mesmo tempo que lhes vai incutindo regras e formas de estar, fundamento básico para lhes começar a introduzir, paulatinamente, os rudimentos da interpretação dos diversos códigos que lhes proporcionem a melhor ligação possível com o mundo que os espera lá fora: na língua materna, na matemática, no conhecimento do meio envolvente, ao mesmo tempo que lhes vai estimulando a solidariedade, a civilidade, a amizade e outras ade.
Os olhos da maioria não escondem o entusiasmo. Parecem potrinhos sem freio, ávidos de galopes intermináveis por territórios bem delineados no sonho, apenas apaziguados por sono retemperador.
Mas há sempre um ou dois que não trazem as defesas necessárias para conviver harmoniosamente num grupo com tanta energia à solta, ávido de se manifestar e de deixar marca de si. Sentem demasiado a mudança de território, e o desconforto fá-los recordar, constantemente, a segurança das mãos da mãe, o seu cheiro, a sua protecção...
O Tiago é um desses casos. A vivacidade dos colegas não o tranquiliza, e cada gesto mais exuberante é uma ameaça para o precário equilíbrio do seu pequeno mundo. A professora, percebendo-lhe a insegurança, tenta apaziguar-lhe as angústias e, após ouvir-lhe a invocação da progenitora pela enésima vez, sugere-lhe que traga para a sala a fotografia da mãe.
No dia seguinte, com um esboço de sorriso nos lábios, o Tiago apareceu na escola com uma moldura com a fotografia da mãe, e mostrou-a à professora. Esta, com a cumplicidade estampada no olhar, elogiou-lhe a beleza, e encorajou-o a colocá-la em cima da mesa de trabalho.
Embora recorrendo a frequentes olhares para a fotografia, o Tiago começou a encarar a escola de forma mais tranquila. As tarefas deixaram de ser penosas, as caras dos colegas começaram a ter contorno de amigos, ousou aventurar-se nas movimentações do recreio...
O pior era quando chegava a hora do almoço. O miúdo, que até aí continuava a trepar degraus na sua integração, quando chegava o meio-dia não conseguia evitar o aparecimento dos seus fantasmas. Apavorava-o o ambiente do refeitório, sem a presença da professora, não conseguindo lidar com a exuberância dos colegas mais velhos, com outro traquejo na arte de lidar com os outros.
Quando a angústia da hora do almoço ameaçava tornar-se um hábito, foi o próprio Tiago a encontrar a solução. Um dia destes, ao chegar a temida hora, aproximou-se da professora e pediu-lhe, baixinho:
- Professora, posso levar a minha mãe comigo?
Perante o acenar positivo, o pequenote pegou na moldura, meteu-a no bolso com todo o cuidado e lá partiu, mais confiante, em direcção ao refeitório.
Nesse dia, na reconfortante companhia da mãe, o Tiago comeu a sopa toda.
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Obrigada Agostinho. É que foi mesmo assim! E o mais engraçado é que o Tiago brinca com a mãe mesmo dentro do bolso!
ResponderEliminarPenso que é um novo corte do cordão umbilical,mas agora dói mais!
Creio que o Tiago fará um curso intensivo de voo e, como é costume, na Primavera iremos vê-lo voar sozinho.
São também estas coisas que me dão gozo e vontade de continuar.
Continua tu também que vais bem!
Obrigada Agostinho. É que foi mesmo assim! E o mais engraçado é que o Tiago brinca com a mãe mesmo dentro do bolso!
ResponderEliminarPenso que é um novo corte do cordão umbilical,mas agora dói mais!
Creio que o Tiago fará um curso intensivo de voo e, como é costume, na Primavera iremos vê-lo voar sozinho.
São também estas coisas que me dão gozo e vontade de continuar.
Continua tu também que vais bem!
7 de Outubro de 2009 20:52
Como mãe, as lágrimas caiem, sempre que leio o seu texto, mas tenho que fazê - lo porque o meu coração pede. O Tiago irá superar com certeza.Sr Prof. Agostinho, Obrigada por aquilo que transmite ao sabor da pena e como alguem já disse, que o seu livro seja mesmo realidade. Aguardamos todos, creio eu, que será para breve.
ResponderEliminarNão fora conhecer o Tiago pessoalmente, e depois desta leitura perceberia perfeitemente como ele era e o seu mundo...
ResponderEliminarAdoro "beber" as suas palavras, alimentam quem tem "fome" de degustar uma requintada refeição!
Para quando o esperado livro??
Este texto tocou-me particularmente.Quando tinha 12 anos vim estudar para o Liceu de Braga porque em Barcelos só havia colégio. Cheguei ao Liceu Sá de Miranda sem entusiasmo, transida de medo e cheia de saudades da minha mãe.Tudo era pretexto para as lágrimas e para a insegurança.Comecei a fazer temperaturas e a emagrecer.Telefonavam para a minha mãe, ela vinha de Barcelos e tudo passava.No ano seguinte, fui para o Liceu Dona Maria II, escola a estrear.Reitora e professores severos, bata azul de petróleo, horrível! Tínhamos de ir fardadas de casa. A coisa piorou
ResponderEliminardrasticamente e comecei a ter pavores.Chorava por tudo e por nada e sofria desmedidamente.Eu estava a estudar em casa de uns tios que não tinhm filhos e que eram padrinhos da minha irmã.Como deixei de comer,os meus pais vinham pernoitar a Braga todos os dias e a minha mãe levantava-se cedíssimo para ir para Milhazes, uns quilómetros depois de Barcelos. Mas bastava eu saber que ela chegaria à tarde para andar mais sossegada. Comecei a dormir melhor( no meio deles!)e sentia que nada de mal me podia acontecer no meio daquele aconchego. E nada aconteceu realmente,mas no sexto ano(actual décimo), impus a condição de continuar a estudar se pudesse ir e vir de Barcelos todos os dias.Tornei-me aluna de excelência e dispensei da aptidão com 18 valores.Foi uma intensa luta contra o medo; foi uma sacrifício colossal para os meus pais, mas ainda hohe nas noites mais tristes me deito no meio da recordação onde eles ainda estão e consigo adormecer sossegada.
Você só pode ser boa pessoa, Agostinho. Os alunos devem adorá-lo.
Um forte abraço de gratidão por me ter trazido o passado.O Tiago há-de superar os adamastores, porque a Índia mora-lhe no retrato onde encontra o tesouro e a especiaria mais preciosa, a oriente do coração.
IBEL
Não sou pessoa de ter fotografias espalhadas pelos móveis da casa (vá-se lá saber porquê...) Pensava eu que a imagem estática e emoldurada de alguém apenas me transmitia melancolia e tristeza!
ResponderEliminarAo viver e sentir o teu texto, foi como se tivesses criado uma nova versão da fotografia.
A visão que transparece das tuas palavras representa a forma mais viva que a fotografia alguma vez poderá ter. Que bela forma de vencer os fantasmas! Que carinhosa forma de ter companhia!
Com a mãe no bolso... quem tem medo de ir à escola?...
Para a Graça: Que bela forma para aprender a crescer!
JB
Olá, senhor professor!!!!
ResponderEliminarEu gostava que o senhor escreve-se um livro,uma biografia, um romance... Algo desse género.
Tem muito jeito para escrever.
A minha prima esta a ver-me escrever!
Olá, Mafalda, mas que surpresa ver-te por aqui!
ResponderEliminarOlha, quanto ao livro, tenho a certeza que, se continuares a trabalhar como tens feito, tu é que o irás escrever um dia. Está combinado?
lindo :)
ResponderEliminare de certeza que agora continua com a mãe nao no bolso...mas dentro do coração.
Brisas doces***
Quanta sensibilidade !
ResponderEliminarLindo texto .
Mergulho na alma .
bj
Cheguei, não sem alguma surpresa, ao seu blog. Ficarei, então, aqui mais um pouco, se não se importa. Belíssima escrita. Sinceros parabéns.
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