terça-feira, 13 de outubro de 2009

O BILHETE

.Joaquim olhava pela janela. Em frente, na Pastelaria Arco-Íris, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Lá fora, na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e tais, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Joaquim abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir preparar a comida que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o profundamente e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, completamente alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que nos seus tempos de homem activo distribuíra entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo começando a lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparou que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Então disse-lhe que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Joaquim não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E no dia seguinte, num ritual sempre igual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair Joaquim ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem tirou o casaco e sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, levou a mão mais uma vez ao estojo, como se para se certificar que continuava no mesmo lugar. Maria aguardava-o, e não queria fazê-la esperar mais.
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8 comentários:

  1. O seu texto está muito bom.Continue assim prof.Agostinho que vai ver que se continuar ainda pode escrever um livro chamado "Minhas Histórias" (sugestão)......
    Continue assim!!!

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  2. Simplesmente LINDO!
    Quem sabe, o pensamento de muitos, e realmente têm tanto que nos ensinar e contar...
    Haveria muito para dizer, mas, digo - lhe sómente "CONTINUE, toque nos assuntos, porque o seu jeito de os transcrever é, sublime".

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  3. Este texto merece uma leitura e um comentário desapressado.Voltarei.Estou muito emocionada.
    Até logo, Agostinho.


    PS_Como hei-de fazer para submeter o comentário com o meu nome?É que não consigo.

    Ibel

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  4. Olá, Ibel!
    Para submeter o comentário com o seu nome terá que ir a "Seleccionar perfil..." e depois clicar no seu tipo de conta, que no seu caso creio ser "Conta do Google". A seguir envia o comentário e aparece-lhe uma janela com a sua conta. Insere a password e clica em "Iniciar sessão". Aparece-lhe, então, uma janela com o comentário e clica em "Enviar comentário".

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  5. Há em si uma pureza imaculada muito branca,muito pueril e limpa.O Agostinho aborda temas do quotidiano de forma leve e poética, com sensibilidade que se entranha no leitor.
    O texto tocou-me particularmente, porque me tocou num ponto fraco:a velhice e a solidão,o fardo para os filhos que não têm condições para tratar dos pais.
    Leia essas histórias aos seus alunos.Se me permitir, gostaria de colocar este texto no blog da escola.Será que posso?
    Um bilhete de partida, metáfora de um rencontro para lá do rio, em busca do barco dos afectos.Maravilhoso!
    Posso abraçá-lo?
    IBEL

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  6. #Ibel,
    Sempre presente, sempre com palavras encorajadoras... Muito obrigado!
    Quanto a colocar o texto no blog da escola, seria uma honra para mim. Disponha.

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  7. Como cheguei à pouco estou fazendo caminhos sinuosos no seu blog rs...
    Quanto mais leio mais gosto. Bjus.

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  8. De vez em quando gosto de revisitar posts antigos. Foi o que sucedeu hoje com o "Interioridades".

    Esta é uma temática, para mim recorrente. Recorrente, apenas e só pela gravidade, pelo drama que representa.
    Haverá maior drama - sim, há outros, eu sei! - do que o abandono nesta fase da vida? É que não se trata só de solidão, trata-se de ABANDONO, puro e simples.
    As casas são pequenas, o trabalho é muito, os filhos exigem isto, aquilo, o outro? É verdade, tudo isso é indiscutível, mas caro AC, quando há amor, quando há respeito por aqueles (muitos deles) que tanto se sacrificaram em prol dos filhos, os tais que os despejam num qualquer lar (lar?), que os abandonam no hospital, quando há amor, há sempre um canto. Sei, por experiência, que não é fácil, mas trata-se dos NOSSOS pais.

    Se me permite felicito-o. Felicito-o não só pelo texto, mas pela temática abordada.

    Abraço.

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