sexta-feira, 30 de abril de 2010

AS PEQUENAS GRANDES COISAS

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Passamos meia vida em busca da receita para que a harmonia faça parte do nosso respirar, mas a verdade é que, sem nos darmos conta, as pequenas coisas têm um peso considerável na determinação da nossa disposição. À laia de exemplo, ainda há pouco, quando me deslocava de carro, com uma certa pressa, para levar o meu filho mais novo a satisfazer um compromisso para o qual já estava um pouco atrasado, fiz um impaciente sinal de luzes a um condutor que demorou mais um pouco a sair da faixa de rodagem da esquerda. Quando, finalmente, o ultrapassei, reconheci uma cara das minhas relações. Sorriso amarelo, pois claro. E senti-me suficientemente mal para que alguma boa disposição que trazia se evaporasse.
Em sentido oposto, por vezes consigo fruir o dia da melhor maneira. E, por norma, tudo se começa a desenhar pela manhã, quando consigo sentar-me para o pequeno-almoço imune à correria do dia que me espera. Gosto de o tomar devagar, sem pressas, a sentir os primeiros raios de sol a entrar através da vidraça. Lá fora os pardais fazem pela vida, e um ou outro melro ousa aproximar-se da horta, onde uma lagarta distraída é presa incauta. A cadela, sentindo sinal de vida, acerca-se da cozinha, pedindo atenção e comida, o pretexto perfeito para ir respirar o ar da manhã. Depois, qual dádiva dos deuses, basta levantar o olhar e deixar que a mancha verde da Gardunha ou a imensidão da Estrela mexam com a minha sensibilidade. Quando o dia começa assim, dificilmente as coisas correm mal. É como se a mente despertasse para o lado mais claro da vida, para um patamar em que tudo faz sentido. Até as coincidências.
Mas é apenas nalguns dias. Noutros o cinzento vai vagueando no ar, dissimuladamente. É que, à medida que o dia avança, vamos sentindo o impacto de muita coisa que nos rodeia, cada qual com o seu tipo de energia. E nem sempre ela é boa.
Às vezes apetece ser ave, mas as asas não obedecem ao anseio.
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11 comentários:

  1. Como eu te compreendo meu caro Agostinho. Sofro do mesmo mal. Também tenho a sensação de que há dias que não se pode sair de casa. Mas se se ficar dentro dela, as coisas não melhoram. Por isso mais vale dar importância ao que é verdadeiramente importante e esse valor não está no dinheiro, nem no poder, nem em querer ter sempre razão. A vida vai-nos ensinando, com o passar dos anos, que opções, atitudes, decisões, que tomámos em certas circunstâncias e nos pareceram as mais adequadas, vieram a revelar-se autênticos desastres e, a inversa, também é verdadeira.
    Coisas simples, olhar sereno, paz de espírito, paciência, lucidez são valores a cultivar. Podem parecer fraca consolação, perante o espavento de alguns, mas não deixa de ser consolação que outros anseiam e não alcançam. Por isso, discordando de ti, as asas existem e obedecem ao anseio, mas nem sempre o anseio é o objectivo correcto para uma Vida, realmente vivida.
    O facto de não concordarmos apenas aproxima mais os nossos pontos de vista. É, pelo menos, a minha convicção.
    Abraço amigo.
    Caldeira

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  2. Senti este texto de forma especial.Digamos que me"abanou".Digamos que o Agostinho conseguiu ler o me vai na alma, abrindo a janel da sua. Ou teria sido a porta? Senti o seu levantar,a "mancha verde da Gardunha e a imensidão da Estrela" e fiquei com inveja da sua horta.Quem me dera um pedaço de terra. Pardais ainda vou ouvindo, chilreios felizes derramando-se no azul imenso. E senti o resto menos bom. Por isso adorei o seu desabafo final""Às vezes apetece ser ave, mas as asas não obedecem ao anseio."

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  3. Caldeira,
    Gosto sempre de te ouvir. É claro que concordo que "Coisas simples, olhar sereno, paz de espírito, paciência, lucidez são valores a cultivar". Mas há momentos em que não nos apetece ser racionais, e necessitamos deitar cá para fora certas "coisinhas" como o mais comum dos mortais. No fundo é "vou ali dar um grito, já venho". Desde que saibamos conviver com isso, acaba por ser salutar. Depois sim, haja lugar para a lucidez.

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  4. Ibel,
    Tenho a sorte de viver numa zona privilegiada pela Natureza, num enorme vale em que a Estrela e a Gardunha estão sempre presentes. Referi, no texto, pardais e melros, mas há por aqui uma enorme variedade de passarada: pintassilgos, estorninhos, garças, cegonhas, piscos, gaios, chapins, tentilhões...
    Depois há a força da terra, uma energia que entra em nós como se fosse a coisa mais natural do mundo.
    Espero que as asas comecem a obedecer ao seu anseio.

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  5. A felicidade raramente vem até nós vestida de gala. Há momentos de exuberância, é certo. O mais das vezes, porém, a felicidade constrói-se de pormenores . O canto da alma entremeado com a lágrima, o suspiro, o véu de tristeza e cansaço.
    E falo por mim, que tenho uma alma saltitona...
    No fim de contas, importa sentir.
    E o que é mais engraçado... mal grado as expectativas (e é tão fácil sonhar grande, sonhar muito...), a vida, por vezes, surpreende-nos.

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  6. E.A.,
    A vida, realmente, por vezes surpreende-nos, e ainda bem que não é sempre pela negativa.
    Sabe uma coisa? Adoro ser surpreendido dessa forma. Há uma carga tão grande de energia positiva nessas manifestações que acabo por ficar, por uns tempos, com a alma cheia.
    Gostei do comentário.

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  7. Pois é, amigo, há dias bons e maus. As pequenas coisas têm mesmo muito peso, por isso é importante a forma como lidamos com elas.
    Para quando uma poesia? Estou a precisar de puxar pelos neurónios. :)
    Abraço

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  8. Jorge,
    Este texto apenas pretende reflectir um estado de espírito, sem grandes reflexões, pois muito do nosso quotidiano passa-se dessa forma. Ou seja, vamos navegando conforme o "estado do tempo".
    Quanto à poesia, talvez por um destes dias.
    Um abraço.

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  9. Olá Professor Agostinho.
    Confesso que esperava ler aqui um poema/mensagem ou algo seu, dedicado à mãe.
    Mas eu sei que anda mt cansado e entendo.
    Aguardamos noticias.

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  10. Ana,
    A verdade é que me sinto mesmo muito cansado. Por enquanto vou escrevendo o possível, depois logo se verá. E temos que acreditar que há sempre um tempo certo para que as coisas aconteçam.

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  11. É curioso, por causa de pequenas coisas que acontecem no início do dia, eu já sei se ele vai correr bem ou mal. Dar valor e acarinhar essas primeiras e pequenas coisas que fazemos logo pela manhã, certamente que acabam por influenciar, em muito, o resto do dia.
    Nós os comuns entre os comuns, por questões de sanidade mental, temos mesmo que aprender a dar valor, às pequenas/grandes coisas.
    Abraço

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