domingo, 6 de maio de 2018

CRÓNICA DUM HOMEM SIMPLES

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AC
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Arredara-se dos homens, seres de mil faces, e acomodara-se numa pequena quinta abandonada. Mau negócio aos olhos dos outros, um pequeno paraíso, feito refúgio, no cintilar dos seus. Os filhos bem tentaram demovê-lo, mas nada feito. Era mesmo aquilo que ele queria.
Alberto limpou, cortou silvas, fez obras, rasgou a terra. Quanto mais fazia mais se ligava, mais jorrava, dentro dele, um sentimento de pertença.
Sentia-se grato a cada dia que passava, de alma aberta ao crescimento e ao definhar das plantas, ao distanciamento respeitoso da bicharada. Só os pardais, eternos senhores de qualquer lugar, pareciam indiferentes à sua presença.
Com o tempo foi descobrindo a magia dos enxertos, qual alquímica arte de multiplicação dos frutos. Tentou macieiras, cerejeiras, pessegueiros, pereiras, abrunheiros... Ganhou-lhe o jeito e, vá lá saber-se como, começou a ganhar prestígio nos seus vizinhos, que de vez em quando o convidavam para exercer o seu talento. Talvez fosse pelo reconhecimento da sua arte, talvez fosse pelo pretexto de saber mais daquele homem simples, de olhos brilhantes, que nunca se queixava fosse do que fosse. E isso intrigava-os. Alberto ajudava no que podia, tentava ser cortês, mas depressa regressava ao seu refúgio. Não era dado a grandes conversas.
Os filhos visitavam-no uma vez por ano, mas depressa se iam. Amarrados pelos compromissos de outras vidas, continuavam a não entender aquela espécie de felicidade do pai, cada vez mais entranhada.
Com o tempo começou a tentar enxertos de várias espécies na mesma árvore. De uma só qualidade era fácil, a questão residia quando tentava congregar várias espécies. Tentou, cogitou, voltou a tentar.
O tempo dum homem nesta vida é limitado, e Alberto bem o sabia. Tudo tem um rumo, um caminhar, e outros homens ocupariam o espaço dos que, entretanto, iam partindo, deixando um legado natural, por mais ínfimo. Sentia-o profundamente, a comunhão com a natureza assim lho ditava. Talvez, por o sentir de forma tão profunda e, em simultâneo, natural, nunca se inquietou com questões de vida ou de morte. Continuava a fazer o que achava que devia, que lhe dava satisfação, num permanente deslumbramento pelas manifestações da vida. Por vezes, alheio à noção do tempo, era capaz de ficar horas a observar um besouro na sua labuta diária, era capaz de se deslocar uma distância considerável só para saber onde um melro fazia ninho...
Um dia, no fim do Verão, também chegou a sua vez. Os filhos, depois do funeral, reuniram-se na casa da quinta, fazendo contas à vida, e só então repararam numa árvore, diferente de todas as outras, que dava ameixas, pêssegos, pêras, maçãs... 
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23 comentários:

  1. Não colaboram nem apoiam ou até nem percebem, mas quando se morre é que descobrem o que perderam, sobretudo a valorização da vida com a natureza...longe do corre-corre tão frenético.

    Vesti a pele desse homem e se pudesse faria o mesmo.

    A-D-O-R-E-I

    Beijocas

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  2. Obrigada por esse post: fez-me recordar meu pai, habilidoso como poucos na arte/ciência da enxertia, que praticava como hobby em finais de semana.

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  3. Não nasci filha da terra, sou filha do betão mas, vivi uns quantos anos num sítio, onde a maioria vivia a, e da, terra. Assisti tantas vezes a esse olhar de encantamento que, até eu, seria feliz assim, como se fosse uma extensão natural da terra, não fossem os besouros e outros bichinhos minúsculos, que a minha miopia consegue descobrir e tornar medonhos :-))

    Boa tarde AC

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  4. Também eu, já prefiro o refúgio das veredas, a movimentadas estradas. Nada se compara com a tranquilidade do campo, ou o acordar com o cantar de um qualquer galo da vizinhança. A propósito, também eu plantei uma cerejeira no jardim este fim de semana solteiro. Um beijinho AC.

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  5. Já eu, cresci a ver alguém amar a terra e a ver experiências das que falas tomarem vida que acabei por amá-la também. Não que lhe tenha dado continuidade mas amo a terra do meu jeito. A sua beleza e poder engrandece-me.
    Boa noite AC

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  6. Desta vez irei ser parca em palavras, mas fico de alma alma cheia:

    A ilação que tiro desta tua crónica, de um homem que viveu feliz no seu apego à terra; concretizando um sonho, para outros impossível, é que o amor e o sentimento de pertença produzem
    milagres.

    Um abraço, A.C.
    Fica bem. :)

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  7. Viver um dia de cada vez.
    E intensamente.
    Aquele abraço, boa semana

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  8. A terra. As árvores. Os frutos. Um legado que ninguém devia desperdiçar. Gostei imenso de conhecer este homem que "nunca se inquietou com questões de vida ou de morte" e que criou uma árvore mágica...
    Um texto magnífico!
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  9. Este homem simples da sua história - ou devo escrever estória -. de simples não tem absolutamente nada, ou seja, é um homem sábio, um homem que encontrou a sua felicidade indiferente à felicidade, para ele estranha, dos outros. Eu cá gosto muito de pessoas reais ou ficcionadas que não hesitam em desbravar o seu próprio caminho, mesmo que outros lhes digam, não, se calhar é melhor não ser por aí...

    Beijinho, AC :)

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  10. Ninguém sabe mais da vida do que aqueles que dão vida à terra. Porque a mãe natureza é uma grande professora.
    Abraço e boa semana

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  11. Meu amigo volto mais tarde para te ler, estou em recuperação de uma cirurgia para remover um tumor do meu olho, ainda não consigo ler.

    Beijinho

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  12. Poeta , gostaria de ter conhecido o Sr. Alberto .
    Seu texto , como sempre , é de uma ternura ímpar .
    Muito obrigada por partilhá-lo .
    Sinto falta de sua visita ao meu espaço .
    Beijos

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  13. Há estórias que no tempo ganham corpo e se fazem histórias de vida de gente admirável e maravilhosa ;-).
    Gostei muito deste testemunho.
    Fica um beijinho com amizade, estima e carinho.

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  14. Que lindo!
    E a árvore pode também ser uma metáfora. Deixamos sempre frutos, não é, querido amigo?
    Um beijinho amigo

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  15. Entendo perfeitamente esse apelo da terra. Acho que poderia ser imensamente feliz isolada da maior parte dos humanos. Mas há as questões práticas, como contas para pagar e escola para garantir ao pequeno explorador.
    Quem sabe um dia, reformada, faça como este simples homem?
    Abraço

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  16. Tanta sensibilidade.
    E a árvore que deixou os seus frutos todos desiguais.
    Gostei muito deste homem simples.
    beijinhos
    :)

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  17. Um conto que nos amacia a alma. Há, em cada ser, uma imensidão e uma forma peculiar de sentir. Diria que criaste um novo mundo a que falta um "golpe de asa". É que não estou habituada a ver-te sozinho. Mas ... não és tu, é o Alberto. Bem sei.

    Beijinho, AC.

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  18. Simples... mas sábio... descobriu o segredo da felicidade... e dela soube desfrutar... daquilo que todos buscam... e não têm a mínima noção... de onde a podem, e como é fácil, encontrar...
    Mais um texto excepcional... para ler, reler... e saborear...
    Beijinho! Boa semana!
    Ana

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  19. Milagres que se festejam com palma.
    A simplicidade de viver em paz frutifica.
    Repararam na árvore, os filhos. Pararam a correria sem tino?
    Tem-se na mão a enxada que aplaca o frenesim do fogacho? E, mesmo assim, sabendo-se que o destino...

    Caro AC és um enxertador exímio.
    Abraço.

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  20. Comovente, pois é igual às vidas que conheço, que conheci...

    Beijo fraterno

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