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Imagem retirada daqui
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A auto-estrada há muito ficara para trás. Após desenvencilhar-se da estrada municipal, com passagem por meia dúzia de aldeias, começou a ladear a montanha por uma estrada estreita, em mau estado, pejada de curvas. Os incêndios tinham deixado marca, era notório, mas ainda se via, aqui e ali, um ou outro pinheiro, além um carvalho, ilhas isoladas no mar de urze e giestas que entretanto tinham desabrochado, sobreviventes duma tragédia há muito anunciada.
Continuou a viagem, tentando redescobrir traços da paisagem doutros tempos à medida que vencia cada curva. No Braceiro, onde as courelas, outrora, alimentadas pela água das nascentes, eram cultivadas com esmero por um rancho de pessoal cantante, tinham soçobrado à invasão das silvas. A vegetação, indiferente à pegada humana, nem de caminhos ou veredas deixara rasto. Digeriu a mágoa, meteu nova mudança e galgou mais algumas curvas. Às tantas, ultrapassada a Fraga da Moura, viu-se na Portela das Almas, ponto de encontro nocturno, segundo estórias de antanho, das almas do outro mundo. Não conseguiu evitar um sorriso com a lembrança, como se regressasse ao tempo em que a avó maravilhava com gestos e palavras nos serões invernais. Encostou o carro, saiu e aproximou-se do enorme tronco do velho castanheiro, centenária sentinela de tudo quanto a vista abrangia. Pôs a mão direita por cima dos olhos, à laia de pala, e divisou, lá ao fundo, sobranceiro ao serpentear da ribeira, o Vale da Ponte, ancestral ninho onde tudo começara. Olhou, demoradamente, para o conjunto de casas. À medida que as ia identificando, sem pressas, o pincel da memória ia dando colorido a cada uma delas, pintalgando-as de mil e uma recordações bordadas com algumas travessuras. Sentiu o coração palpitar, sentia-se de regresso à eterna casa.
Olhou para o relógio. O tio e o alemão já deviam estar na loja da Belmira, um misto de mercearia, taberna e posto público, epicentro das poucas novidades do lugar, aguardando a hora para a consumação do acto que ali o trouxera. Estava tudo tratado e falado, a internet facilitava muito estas coisas. O alemão, saturado da vida urbana, procurava reencontrar a autenticidade da vida no contacto com a natureza. Ele, por sua vez, incapaz de se libertar das teias com que a vida o foi tecendo, viu naquele estrangeiro a oportunidade de cumprir a promessa que fizera à mãe: as terras herdadas da família em Vale da Ponte nunca seriam abandonadas.
Reentrou no carro e encetou a descida. O contrato, por sua exigência, não contemplava a venda dos terrenos. O alemão instalava-se, cultivava, podia introduzir todas as ideias que lhe povoavam a mente, dar livre curso à sua utopia. No entanto, após o consumar da sua vida, as terras voltavam à posse da família. Talvez os filhos, ou os netos, quem sabe...
- Frank Bauer?
Olhou para o relógio. O tio e o alemão já deviam estar na loja da Belmira, um misto de mercearia, taberna e posto público, epicentro das poucas novidades do lugar, aguardando a hora para a consumação do acto que ali o trouxera. Estava tudo tratado e falado, a internet facilitava muito estas coisas. O alemão, saturado da vida urbana, procurava reencontrar a autenticidade da vida no contacto com a natureza. Ele, por sua vez, incapaz de se libertar das teias com que a vida o foi tecendo, viu naquele estrangeiro a oportunidade de cumprir a promessa que fizera à mãe: as terras herdadas da família em Vale da Ponte nunca seriam abandonadas.
Reentrou no carro e encetou a descida. O contrato, por sua exigência, não contemplava a venda dos terrenos. O alemão instalava-se, cultivava, podia introduzir todas as ideias que lhe povoavam a mente, dar livre curso à sua utopia. No entanto, após o consumar da sua vida, as terras voltavam à posse da família. Talvez os filhos, ou os netos, quem sabe...
- Frank Bauer?
O sorriso desenhado e a mão estendida diziam tudo.
Almoçaram em casa do tio, conversaram sobre as gentes e o lugar e depressa ultimaram as pontas soltas daquele inusual contrato. Após mais um aperto de mão, de olhos nos olhos, faltava a parte mais solene, aquilo que verdadeiramente ali o trouxera. Dirigiu-se para o cemitério, empurrou o velho portão de ferro e procurou a campa familiar. Depois, em acto solene, justificou-se:
- Ouve-me bem, mãe. Prometi que um dia voltaríamos para este lugar, a terra que sempre amaste, que corre nas nossa veias, mas as minhas batalhas foram mais que muitas e os teus netos andam distraídos com outras lides, correndo em busca não se sabe bem do quê. Mas renovo a promessa: um dia havemos de voltar, como tu sempre quiseste, mas parece-me que, por ora, as nossas terras ficam bem entregues. Sabes, tu havias de gostar do Frank. Os olhos brilham-lhe quando fala da terra, está prenhe de planos, até já fala em construir uma mini-hídrica. Bem sei que não era isto que sonhavas, mas podes ficar descansada, mãe, ele vai saber cuidar da terra como ninguém. Adeus, mãe. Tal como o poeta, já podes ir com as aves.
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- Ouve-me bem, mãe. Prometi que um dia voltaríamos para este lugar, a terra que sempre amaste, que corre nas nossa veias, mas as minhas batalhas foram mais que muitas e os teus netos andam distraídos com outras lides, correndo em busca não se sabe bem do quê. Mas renovo a promessa: um dia havemos de voltar, como tu sempre quiseste, mas parece-me que, por ora, as nossas terras ficam bem entregues. Sabes, tu havias de gostar do Frank. Os olhos brilham-lhe quando fala da terra, está prenhe de planos, até já fala em construir uma mini-hídrica. Bem sei que não era isto que sonhavas, mas podes ficar descansada, mãe, ele vai saber cuidar da terra como ninguém. Adeus, mãe. Tal como o poeta, já podes ir com as aves.
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Belíssimo texto. O primeiro parágrafo, ressalvadas as espécies vegetais distintas, é quase uma descrição do que tem acontecido em certo país da América d Sul, em que os incêndios florestais não são raros.
ResponderEliminarUm abraço, tenha uma ótima semana!
Antes de escrever tive de limpar as lágrimas.
ResponderEliminarUm texto emocionado e emocionante, que me trouxe a lembrança de uma promessa - também cumprida - que não verbalizei, mas sei que esteja onde estiver, a minha saudosa Mãe saberá que a sua última morada não foi em terra "onde ninguém a conhecia", como tanto temia.
Não deu o seu último suspiro na terra que a viu nascer, mas é lá que repousa, e dorme, o sono derradeiro.
Um beijinho, AC.
A cidade grande enfeitiça a vida e tolda os pensamentos, só mais tarde, às vezes, tarde demais, nos apercebemos da riqueza das raízes, e do tanto sofrimento que podíamos ter evitado, se menos ambiciosos.
ResponderEliminarBoa noite, AC, como sempre, lê-lo é um colírio para os olhos e para a alma
Retomando as rotinas depois de uma semana em correria em Portugal.
ResponderEliminarBoa semana
e ela foi :)
ResponderEliminarÉ o nosso destino entregar a outrem o que os nossos maiores nos legaram e que nós, por vicissitudes da vida, não conseguimos manter como jardins produtivos, como foram outrora.
ResponderEliminarO meu sentido utópico da vida, de quando em vez, diz-me: não há espaços vazios que não tenham tendência a encher. Alguém, algum dia, voltará a aproveitar o pedaço de chão que alimenta e vivifica a gente. Assim o queiram as elites que tudo determinam num qualquer gabinete dum grande centro urbano.
Fiz consigo esta viagem como se fosse personagem da sua narrativa. Senti a sua emoção. Partilhei consigo o amor pela terra…
ResponderEliminarLindíssimo!
Uma boa semana.
Um beijo.
Um texto tão cheio de poesia, como de memórias e emoções. Para ler e reler com o coração, apertado, lembrando outros tempos, outras histórias, senão iguais, muito parecidas.
ResponderEliminarAbraço
Não sei por que, mas me emocionei muito ao te ler. Do início ao fim,arrepios de emoção! LINDO sentir! abração,chica
ResponderEliminarMais importante que prometer
ResponderEliminaré cumprir
Sempre bom visitar as suas memórias vivas
Abraço
Promessas adiadas e não cumpridas que acabam por ser carregadas para sempre e nunca esquecidas. No entanto, o amor à terra ainda deve estar lá, enraizado. Apenas um pouco esquecido talvez...
ResponderEliminarQue texto emocionante.
Bjinho AC
Arrepiei-me a ler este texto. Trouxe-me tantas recordações!
ResponderEliminarGrata por este momento.
Um abraço
oii, boa noite! três coisas na vida que nós nunca deveríamos quebrar: promessas, confiança e um coração. passadinha para deixar um beijo grande com o desejo de uma semana gloriosa!
ResponderEliminarA sua narrativa é cheia de movimento, paisagens, odores, cores, luzes e muito emocionante!
ResponderEliminarSeguimos consigo nessa viagem da memória e do tempo real (simultaneamente), em que o pensamento escrito, vai nos atualizando da ancestralidade e da profunda ligação com a terra, do sentimento arraigado até onde a vista alcança e o coração em paz, por finalmente poder voar "com as aves".
Seu texto remeteu-me ao poema, CEMITÉRIO PERNAMBUCANO (NOSSA SENHORA DA LUZ), do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto.
Trago um excerto:
"[...]hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão".
Comovente amigo e felizes daqueles que "têm terra" para emoções, recordações, inovações e outros "ões" ao invés de mim que sou uma sem terra e qualquer dia sem casa:). Olha sinceramente chorei ao ler este teu "exemplo de vida" que só hoje consegui comentar.
ResponderEliminarNão gostei da imagem o que te peço imensa desculpa:(
Abraços e obrigado
Que triste, lembrei de minha querida mãe, não prometi nada a ela, mas sabia de sua preferência. Hoje faria diferente. Certas coisas temos de pensar sozinhos para não nos arrependermos. Ficou a lição.
ResponderEliminarBeijo, uma ótima semana.
Quase o li em voz alta, meu caro AC. Acho que ainda vou fazê-lo. Nada se fechou ao teu olhar, ao teu lirismo... Um belo texto!
ResponderEliminarUm abraço,
De uma sensibilidade invulgar! A emoção estética perpassa cada palavra...
ResponderEliminarBJ
... caminhei pelas suas palavras e voltei à terra, às raízes.. obrigada
ResponderEliminarTocante!
ResponderEliminarNem todas estas histórias correm bem. E heranças abandonadas doem mesmo.
Um beijo, AC.
Um texto comovente... que nos mostra... que um dia, sempre se volta... à origem de todas as coisas... normalmente, sempre lá mais para o futuro... com... ou sem contratos...
ResponderEliminarBeijinho
Ana